Sala de estar de um amplo
apartamento de uma família de classe média alta, sentados no sofá, marido e
mulher há quase 20 anos, estão Sérgio e Luciana, ele lê um jornal, enquanto ela
folheia uma revista.
- Meu amor, você já viu a casa
nova que os Silva compraram?
- Ainda não, mas com certeza não
foi pela COHAB...
O olhar de Luciana demonstra toda
sua censura, com certeza ama seu marido, mas não consegue entender seu descaso
pelo luxo, pelo conforto, pela notoriedade, ainda mais quando a ostentação está
tão em moda, definindo quem realmente está mais próximo do sucesso, da
felicidade, pelo menos do que ela entende por isso.
- Está aqui na revista! Só o
salão de jogos deve ser do tamanho do nosso apartamento, afinal o que ele faz
na vida para ter tanto dinheiro assim...
Sérgio nem levanta os olhos do
jornal, tem esperança que aquele diálogo não vá durar tanto tempo, e que não
descambe para o mesmo final de sempre, a discordância de opinião e de desejos.
- Ele é um consultor para
licitações, ele torna aptas empresas para participarem de concorrências
públicas, dizem as más línguas que ele é o intermediário nas “maracutaias”, o
que não duvido...
- E se for, ele que está certo!
Burro é você que com essa mania de “santinho” no máximo o que vai arrumar é
este apartamentozinho e o pior, com mais de dez anos para acabar de pagar...
Pronto, o primeiro golpe já fora
desferido, pela primeira vez ele abaixa o jornal e a encara sorrindo.
- Se você acha que a nossa
cobertura duplex é um apartamentozinho, eu posso trocar por um quarto e sala,
com certeza dava pra ter comprado um a vista só com a entrada que dei aqui...
- Ah claro, nossos amigos moram
em casas e apartamentos luxuosíssimos e nós iríamos para onde você queria ter
ido, para aquela casinha de dois quartos bem longe do nosso bairro, porque não
aceitei essa excelente ideia, assim quando nós os convidássemos para retribuir
os magníficos jantares que eles nos oferecem, era só a gente colocar a mesa na
garagem ou quem sabe na calçada...
- Então fique contente com nosso “apartamentozinho”
e pare de reclamar de barriga cheia...
Volta a leitura, confiante no
desfecho, um bom empate técnico, assim estava garantida a paz, mas não, claro
que não seria assim tão simples.
- Sérgio, eu só estou dizendo é
impossível você sendo vice-presidente de uma multinacional não consegue nem
“unzinho” por fora, acorda homem! É você que comanda o departamento de compras,
quer ser o único executivo honesto do mundo? O último dos moicanos?
Ele agora fecha o jornal e o joga
sobre a mesa, sabia que nada mais faria com que a pedra parasse de rolar pela
ribanceira abaixo.
- Ótima ideia, Luciana! Assim
quando for descoberto, além de perder o emprego, ainda vou para a cadeia, bem,
pelo menos vai sobrar mais espaço para você no seu “apartamentozinho”...
- Então na verdade você não é
honesto, simplesmente tem medo de ser pego fazendo algo errado, é só falta de
ousadia, de coragem, é o que estou dizendo, poderíamos estar vivendo em uma
situação muito melhor...
- O que falta para você Luciana? Moramos
em uma cobertura, cada um tem um carro do ano...
- Também financiados...
- Nossos filhos estudam no melhor
e no mais caro colégio da cidade, temos duas empregadas para fazer todo o
serviço, você não precisa colocar suas lindas mãozinhas em nada...
- Duas incompetentes...
- Foi você mesma que as escolheu,
bem, continuando o inventário da nossa pobreza, somos sócios do melhor clube da
cidade...
- Graças a indicação dos Barros
de Andrade...
- E daí? Tínhamos que ser
indicados por alguém, só que a mensalidade quem paga sou eu não é o amigo da
sua mãe, o ilustríssimo senhor Barros de Andrade...
- Sim, mas nós indicamos meus
primos e eles ainda não foram aceitos, estão há quase seis meses na lista de
espera...
- E eu tenho culpa?
- Não tem nem culpa e nem
influência, você não se enturma, não conversa com as pessoas certas, com quem é
importante...
- Não nasci para ficar bajulando
ninguém...
- Isso não é bajulação, isso se chama
lobby, marketing pessoal, você tem que se fazer notado...
- Por quê? São eles que pagam as
minhas contas?
- Você é um ignorante mesmo!
Temos que ganhar status, sermos convidados para as festas, para os jantares
mais importantes, temos que conviver com eles, dinheiro chama dinheiro, e
pobreza chama miséria, se depender de você ficaremos assim para sempre!
Ele agora se ajeita melhor no
sofá, a pedra ganha cada vez mais velocidade e peso.
- Assim como?
Ela hesita, apesar de se saber
com razão, sabe como é difícil tratar daquele assunto com o marido.
- Ora...
Antes que os ânimos esquentem
ainda mais, os filhos do casal, Debora e Rubens, jovens adolescentes, entram
ruidosamente na sala e beijam os pais, se sentando, ou melhor, se jogando entre
eles no sofá.
- Finalmente vocês chegaram! Por
que demoraram tanto?
- Pergunte para o Rubens, o “Brad
Pitt” depois da dengue, tenho que ficar esperando ele se despedir de todas as
meninas da escola, bom, dois beijinhos em cada uma, vezes duzentas...
- Essa Débora é inveja pura, só
reclama porque os carinhas passam batido e nem notam que ela existe, é tipo um
poste, ou uma cadeira usada do colégio que ninguém quer sentar...
- Eu é que não dou a mínima para
aqueles “tongos” isso sim, se juntar todos não dá para fazer um, já o meu
irmãozinho, se deixar, pega até a Dona Rita, a servente de setenta anos, se ela
der moleza...
A mãe sorri e abraça a filha
olhando provocadora para o filho.
- É isso aí filha, o importante
não é a quantidade e sim a qualidade...
- É verdade o que sua mãe diz!
Olhem bem pra mim e vejam o que de bom ela conseguiu...
- Isso só prova Sérgio que não
devemos nos distrair um segundo sequer...
Rubens dá um salto do sofá e
balança a cabeça, olhando os pais.
- Xiiii...vai começar a batalha...
Luciana também se levanta e
abraça o filho, lhe dando um sonoro beijo.
- Não se preocupem, a cota de
opiniões divergentes de hoje já foi alcançada...
- Isso é ótimo mãe, então, vamos
ao shopping ou não?
- É mesmo, a Luciana está certa,
a senhora prometeu...
O sinal de alerta imediatamente
soa na cabeça de Sérgio, shopping é sinônimo de consumo, e no caso, supérfluo,
e com o seu dinheiro.
- Shopping, hoje? Pra que?
Luciana suspira, mais uma pequena
batalha, mas essa ela sabia que, com a ajuda dos filhos a vitória seria mais
fácil.
- Passear...
Débora pega a deixa e,
carinhosamente se aconchega no pai.
- A senhora ainda não falou para
ele?
- E o que sua mãe teria para
falar para mim que se relacione com um passeio no shopping?
É a vez de Rubens se aliar a
tropa de choque.
- Dos nossos celulares...
- Estão com defeito? Compramos só
há seis meses, ainda estão na garantia...
- Por isso mesmo pai, seis meses,
já estão por fora, todos da galera já estão com modelos novos...
- “Por fora”, Débora? Mas o que
mudou tanto assim em seis meses? Tem tudo no celular de vocês, o que está
faltando?
- Ah pai, sai dessa...
- A Débora tá certa paizão, o
senhor vai querer que a gente carregue esses dinossauros por aí?
- Mas, Rubens...
Luciana intervém, pronta para o
desfecho já esperado por todos: a capitulação.
- Não adianta, o pai de vocês não
entende essas coisas, ele quer que vocês sejam desprezados por seus amigos...
- Por causa dos celulares? E
vocês acham que isso são amigos? Na minha época o amigo era aquele que
emprestava a grana para o outro que estava duro para poderem se divertir todos
juntos...
- Os tempos são outros, meu bem, e
o nível das amizades também, eles gostam de conviver com pessoas que têm o
mesmo poder que eles, e com toda razão, cada um no seu lugar...
- Deixa pra lá pai, se o senhor
não tem dinheiro tudo bem...
- É pai, a Débora falou tudo, esquece...
- Não é questão de ter ou não
dinheiro, e sim de não jogá-lo fora, é diferente...
Luciana já tinha o plano todo
traçado, nova estratégia, novo argumento.
- Então nós vendemos os celulares
velhos...
Sérgio sorri irônico, como
combatente já está calejado.
- Velhos?
- Sim velhos, deve estar cheio de
gente por aí que ia adorar ter essas velharias, quem sabe até as empregadas não
fiquem com eles, vamos descontando do salário, perto do delas esses devem ser
um tesouro, e assim você só dá a diferença e fica em paz com sua consciência
social...
Rubens se anima, sabe que a
vitória agora está mais próxima.
- É pai...
E o sorriso meigo da filha dá o
golpe final.
- É paizinho, deixa vai...
- Está bem, vocês não têm jeito
mesmo...
- É isso aí velho, vamos Debora,
vamos nos arrumar, tem um modelo que quero te mostrar, é a tua cara...
Os dois saem da sala conversando,
animados.
- Você está estragando nossos
filhos, eles têm que aprender a dar valor para as coisas...
Luciana também vai deixando a
sala, sorrindo triunfante, dá uma piscada para o marido.
- E não dão? Tanto sabem dar
valor que só querem tudo que é do bom e do melhor, como eu, ah, falando nisso,
vou comprar um celular novo para mim também...tchau...tchau...
- Nada disso, espere aí...
Ela já se fora para o interior da
casa, ou melhor, do “apartamentozinho”, tarde demais.
- 0 -
Luciana caminha de um lado ao
outro da sala, demonstra impaciência, Sérgio entra displicente na sala,
chegando do trabalho, demonstra cansaço, certa apreensão.
- Boa noite querida...
Vai até ela e a beija rapidamente,
sentando-se no sofá, joga a pasta ao lado, afrouxa a gravata.
- Isso são horas Sergio? Você não
está esquecendo nada?
- Do que? Não vai dizer que vamos
há algum lugar? Ser for isso pode esquecer, meu dia foi terrível, ficamos
sabendo que a nossa matriz...
Luciana o interrompe impaciente.
- Impossível de “esquecer”,
porque nós não vamos a lugar nenhum e sim ficar, você é que deve ter esquecido
que convidou nossos amigos para jantar hoje aqui em casa...
- Droga, esqueci completamente e
logo hoje...
- O que houve que te deixou assim
tão estressado?
- Nossa matriz nos Estados Unidos
foi vendida para um grupo alemão, corre o boato que eles vão fechar várias
filiais e a do Brasil pode ser uma delas...
- E o que tem isso demais?
- Quase nada, se não tem filial,
consequentemente não tem trabalho, simples, ficarei sem emprego...
- E você fica desse jeito só por
causa disso? São só boatos, não adianta sofrer por antecipação, e mesmo se isso
acontecer, você é um excelente profissional, logo arranja outro emprego, até
mesmo melhor que esse...
- Mesmo assim fico preocupado,
não está tão fácil assim arranjar emprego, ainda mais para o nível do cargo que
eu ocupo...
- Relaxe querido e vá tomar um
banho, se arrume bonitinho, eles já devem estar chegando, hoje é sexta-feira,
vamos aproveitar e tomar um pilequinho...
Sergio suspira, sorri para a
esposa.
- Está bem, você venceu! Vai ver
é só boato mesmo...
- É claro, no final acaba até
pintando uma promoção...
- Deus te ouça! Já volto...
Dá outro beijo rápido em Luciana
e vai para o interior da casa, ela dá mais uma olhada no grande espelho na
parede ajeitando a roupa.
- Até parece que com tantos
amigos o Sergio precisa se preocupar com emprego...
Toca a campainha, ela se ajeita
passando a mão pelo vestido; após alguns instantes, a campainha volta a tocar.
- Será possível!
Soraia, uma das empregadas, entra
afoita, atrapalhada.
- Dona Luciana, a campainha está
tocando...
- Não me diga Soraia! Nossa, acho
que vou correndo atender!
- A senhora não prefere que eu
atenda?
- O que você acha Soraia? Será
que você não vai aprender nunca?
- Desculpe...desculpe...
Soraia sai correndo da sala, após
alguns instantes vozes animadas se ouvem, ela retorna com os convidados,
Luciana se apressa em recebê-los.
- Queridos! Vieram juntos!
São dois casais, ela cumprimenta
a todos, Iracema e Oscar, além de Fernando e Lourdes.
Iracema sorri e esclarece.
- Não querida, nos encontramos na
portaria...
- Sim, pontualidade britânica...
- Eu diria Oscar, impontualidade
brasileira, afinal marcamos oito horas, e chegamos “impontualmente” as nove
horas...
- Não esquente Fernando, vamos
sentar gente, o Sergio se atrasou um pouco, está no banho, logo estará com a
gente...
Lourdes olha a volta.
- E as crianças?
- Foram ao clube, chegarão mais
tarde, e então Lourdes, é amanhã o chá beneficente?
- Sim, as três e meia, no salão
de mármore do clube, toda a sociedade estará pressente...
Fernando sorri e balança a
cabeça.
- Se pesarem toda a maquiagem
mais os colares de pérolas daria mais de uma tonelada...
Oscar bate no ombro do amigo
concordando.
- Que é isso Fernando, a
maquiagem diurna é mais leve, daria uns novecentos e noventa quilos...
Todos riem, mas Iracema não se dá
por vencida, precisa defender a “espécie”.
- Vocês são muito engraçados, mas
gostam de desfilar ao nosso lado quando estamos “fashion” e cheirosinhas...
Oscar como sempre, mas prático e
mais afeito as suas prioridades.
- Cada chá desses as lojas do
shopping ganham mais que as crianças pobres...
- O chá é para as crianças dessa
vez Iracema?
- Ah sei lá Luciana, tanto faz, os
organizadores que cuidem disso, se vai ser para os velhinhos caquéticos ou para
as crianças remelentas não importa, o importante é brilhar...
Mais uma vez todos riem, como é
bom a diversão entre amigos. Luciana fica mais solta sempre, quando é tão bem
compreendida.
- É mesmo, o que vale é
participar, ser fotografada, sair nas revistas ao lado das tops...
- Essas mulheres são
impressionantes, fazem de tudo para aparecer, qualquer dia vão fazer um chá
beneficente para a torcida do Corinthians, esses sim precisam, afinal são os
verdadeiros sofredores...
- Falou tudo Fernando, só que vão
ter que fazer um caldeirão de chá do tamanho do Morumbi, corinthiano é igual
barata, cada um que morre aparece dois não sei de onde...
Sergio entra na sala em tempo de
ouvir o final da conversa.
- Salve o Corinthians, o campeão
dos campeões, eternamente, dentro dos nossos corações, quer dizer que não
esperaram nem eu chegar para começarem a tentar arrasar o melhor time do
Brasil...
Alegre ele cumprimenta a todos.
Oscar não perde a deixa.
- Chegou o doente! Ainda tenho a
esperança de te livrar desse mal...
- Isso é impossível, ele se livra
de mim, mas não do timão, bem meninas, vamos deixar os homens digladiarem por
outros homens e uma bola, e vamos para a sala de música, logo o jantar estará
pronto, isso se as minhas “queridas” empregadas conseguirem realizar esse
“difícil” trabalho...
Elas riem e saem juntas.
- Então o que os meus amigos
porquinhos palmeirenses vão beber?
- Para mim uísque com gelo...
- Dois, eu sigo o Oscar, para
comemorar a vitória do verdão...
- E eu vou tomar um para
esquecer...
Vai até uma mesa onde estão as
bebidas e prepara os drinques.
- Então Sergio, como estão as
coisas?
- Caminhando Oscar...
Oscar olha para Fernando, ele
pigarreia e arrisca.
- Hoje ouvi dizer que a matriz da
sua empresa foi vendida...
- Já estão comentando? Eu mesmo
só soube hoje também...
Oscar abaixa os olhos e dá um
gole na bebida, antes de decretar.
- Essas notícias voam, dizem que
vão fechar várias filiais, e a do Brasil poderá ser uma delas...
- Não sei não, nossa filial
sempre deu lucro...
- O que importa é a margem dos
lucros, meu diretor mesmo comentou que o dinheiro investido na produção da sua
empresa se estivesse no mercado financeiro o lucro seria para eles muito
maior...
- Pode ser Fernando, mas uma
empresa não pode pensar só nisso, tem que avaliar também o seu papel no campo
social...
- Social? Em que mundo você vive
Sergio?
- O que você queria Oscar, o cara
é corinthiano, vive sonhando...
- É sério gente, a geração de
empregos gera rotatividade de capital, são várias famílias que dependem desse
trabalho, assim como também estão ligados àqueles que lhes fornecem bens e
serviços, o que gera na sociedade novos empregos, novas oportunidades, novos
consumidores, é uma reação em cadeia, se tudo fosse como vocês falam, a maioria
do capital investido no mercado financeiro, logo não existiriam empresas e
consequentemente, não existiriam ações em que se investir, e o nível de
desemprego aumentaria, é uma bola de neve, se sou sonhador, não sei, mas só
quando as pessoas tiverem um trabalho digno e bem remunerado teremos resolvidos,
tanto o problema das empresas, como dos empregados, da saúde de um depende o
bem estar do outro...
Oscar levanta-se e bate palmas.
- Bravo! Bravo! Você quase me
convence que em vez de eu investir na bolsa, com excelentes dividendos, não
precisando mais que dois ou três telefonemas por dia para viver tranquilamente,
eu deveria abrir uma empresa, contratar várias pessoas, acordar bem cedo, me
desgastar o dia inteiro com clientes, fornecedores, com empregados relapsos, de
quebra, sempre insatisfeitos, para talvez, eu disse talvez, ganhar a mesma
coisa do que eu ganho hoje...
- Por um lado o Sergio está certo
Oscar, não adianta poucos ganharem muito enquanto muitos ganham pouco, mal
conseguindo sobreviver, já vemos o resultado disso todos os dias com o aumento
do índice de criminalidade, a tendência é só piorar...
- Cadeia neles! Trabalho forçado,
pena de morte, o que me importa? O mundo é assim, sempre foi e sempre será,
existem os vencedores e os perdedores, cada um que se vire como pode, cada um
com os seus problemas...
Sérgio balança a cabeça
negativamente sem concordar.
- Seria bem melhor se todos
vencessem...
- Isso é utopia, comunismo, socialismo,
isso não existe mais, esse sonho já acabou...
- Eu não estou falando que todos
têm que ter o mesmo padrão de vida, e também não é isso que as pessoas querem,
elas só precisam de respeito, de serem valorizadas no que fazem, tendo
condições de ter onde morar, alimentação, uma boa escola para seus filhos, bons
hospitais, direito ao lazer, o básico que a gente só vê em campanha eleitoral, eu
também sou contra essas esmolas sociais, como vale-transporte, vale
alimentação, cesta básica, salário família, bolsa disso ou bolsa daquilo,
apesar de que hoje em dia, infelizmente, tudo isso ainda é necessário para que
muita gente tenha uma vida menos humilhante, sou a favor que o próprio salário
de quem trabalha deva ser o suficiente para que cobrisse todas suas despesas e
tivesse ainda oportunidades de crescer e melhorar, pelo seu próprio esforço...
Oscar dá uma risada sarcástica e
balança a cabeça, notadamente não gosta de ser contrariado em seus argumentos.
- Quer dizer que um engenheiro
investe um dinheirão na faculdade, fora seu próprio tempo e esforço, para
depois um pedreiro semianalfabeto ter o direito a ganhar a mesma coisa que ele?
- Ganhar a mesma coisa não, mas
ter os mesmos direitos sim, cada um merece o mesmo respeito e o mesmo
tratamento por parte da sociedade, esse seu pedreiro semianalfabeto, que não o
deveria ser, porque todos têm o direito também a educação, tem o direito de
levar a família dele para passear domingo no mesmo shopping que o engenheiro
frequenta, como ocorre em qualquer país do primeiro mundo, frequentar os mesmos
restaurantes, se assim o quiser, ser sócio do nosso clube...
Fernando o olha assombrado, até
que estava começando a concordar com Sérgio.
- Já está exagerando o
corinthiano...
Oscar agora está irritado, não gosta
de ser posto em dúvida, acha-se muito bem resolvido, um vencedor, um homem de
sucesso que têm tudo que deseja conquistar.
- Exagero não! É loucura mesmo, ele
só faz esse discurso barato porque está com medo, só porque está praticamente
desempregado...
Neste momento as mulheres
retornam a sala, e é claro que com a altura com que Oscar externou sua
indignação elas não poderiam ter deixado de ouvir.
- Desempregado? O Sergio?
- Não querida, ninguém está
desempregado, o Oscar está exagerando, coisa de palmeirense...
- É verdade, estou exagerando,
ainda falta assinar os papeis...
- Oscar, por favor! Você prometeu
não falar nada...
- Falar o que Iracema, você
também está sabendo de alguma coisa?
- Agora eu também gostaria de
saber...
- Até eu agora fiquei curioso
Sérgio, desembucha logo homem!
- Ora Fernando, o Sergio sabe
muito bem que o meu escritório de corretagem tinha ações da sua empresa, e há
mais de duas semanas o meu sócio no exterior mandou que eu as vendesse o mais
rápido possível, ele sabe de fonte segura que a filial do Brasil vai fechar
logo que a transação internacional for concluída, e que todos vocês serão
demitidos...
Sergio senta e põe as mãos na
cabeça.
- Meu Deus! Não é possível, não
acredito!
- Calma, Sergio, hoje em dia isso
é normal, não é caso para se desesperar...
Luciana está constrangida frente
aos amigos por causa da postura do marido, tenta contornar a situação.
- Também acho, Fernando, é só um
empreguinho, logo o Sérgio arranja outro...
- É verdade, amigo, ânimo! Amanhã
mesmo vou começar a sondar minhas relações e logo você já estará de emprego
novo...
Oscar agora está arrependido de
ter se precipitado ao ver a reação do amigo, também tenta contemporizar.
- É Sergio, eu mesmo vou dar uns
telefonemas, e você vai poder até escolher onde trabalhar...
- Obrigado amigos, é que fiquei
abalado com a notícia, desculpem...
Oscar agora ri divertido,
desanuviando o ambiente.
- Não esquenta, isso é coisa de
corinthiano mesmo...
Fernando aproveita o gancho.
- Estão tão acostumados a perder
que são pessimistas natos...
- Querida será que o pernil já
está pronto? De repente me deu uma vontade de comer um porco...
Todos riem.
- Claro querido, vamos meus
amigos, o jantar vai ser servido...
- 0 -
Sérgio está sentado no sofá,
vários papeis à sua volta, entra Luciana, tranquila, de seu chá da tarde do
clube.
- Olá querido, as crianças já
chegaram?
- Ainda não, devem estar
chegando...
- O que você está fazendo no meio
dessa papelada?
- Contas e mais contas, nos meus
cálculos com a indenização que recebi dará para aguentarmos por uns três
meses...
- Ainda tem o fundo de
garantia...
- Ou o que restou dele, não
esqueça que o usamos para dar entrada no apartamento...
- É verdade, mas não esquenta
querido, em três meses você já estará trabalhando de novo...
Entram os filhos em na sala,
beijam os pais e se jogam no sofá.
- Olá papai, olá mamãe, estou
quebrada, essa semana de provas deveria se chamar semana do terror...
- Você está certíssima maninha, a
prova de matemática estava de matar, era tanto número que até o lápis ficou
tonto, e pelo que estou vendo não sou só eu que me perdi nas contas hoje, não é
pai?
- Seu pai recebeu a indenização,
temos três meses tranquilos pela frente...
- Oba! Então vamos jantar no
shopping, e aproveitar para ver umas roupinhas...
- Aí sim Debora, hoje você está
bem em todas, tem um skate novo que chegou que estou louco para ver...
- Excelente ideia crianças,
enquanto vocês passeiam, nós podemos pegar um cineminha, que tal Sergio?
- Esperem um pouco, eu quero
exatamente falar sobre isso com vocês...
- Então vamos logo pai, enquanto
jantamos a gente leva um papo, estou morrendo de fome...
- Espere um pouco só Rubens, precisamos
ter essa conversa agora...
Luciana olha desconfiada.
- Xiii...tanto mistério...
- Se for sobre as notas o senhor sabe
que o nosso forte são os últimos bimestres...
Debora olha assustada para
Rubens, que também reforça a defesa.
- É pai, a gente recupera
fácil...
- Não, não é isso, é que...bem...
- Fala homem! Está até branco,
parece uma folha de caderno, aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu não Luciana, precisa
acontecer, pelos cálculos que fiz realmente estamos garantidos por três meses,
mas para isso precisaremos de alguns cortes, simples, mas necessários...
Luciana fica boquiaberta e
balança a cabeça. Acha que não ouvi muito bem.
- Cortes? Você quer dizer
economizar?
- Sim, pelo menos até eu arrumar
outro emprego...
- Logo você estará novamente empregado,
pra que isso?
- Por precaução querida, temos
que ser realistas, se eu conseguir logo outro emprego, dentro dos nossos padrões,
ótimo...caso contrário...
- Desculpe Sérgio, mas acho isso
totalmente desnecessário...
- Se não fizermos isso o nosso
dinheiro dura no máximo um mês...
- Tempo mais que suficiente, o
Oscar não conseguiu uma entrevista para você?
- Sim...mas...
- Mas o que homem? Deixe de ser
pessimista! Agora você quer que passemos necessidade a toa?
O clima começa a esquentar, os
batalhões se preparam para o confronto, as defesas foram ativadas.
- Passar necessidade? Mas quem
falou isso? Só estou pedindo para deixarmos algumas coisas de lado até que tudo
volte ao normal...
Rubens tenta evitar que os pais
briguem, sabe o quanto aquilo pode se estender, talvez ainda pensando no skate
novo que ainda pretendia comprar naquela noite.
- E que coisas são essas pai?
- Para começar, dispensaríamos
uma das empregadas...
- O que? E quem vai fazer o
serviço? Eu? Você sabe que não tenho tempo! Quer dizer que você que perde o
emprego e eu que vou ter que me matar de trabalhar?
- Ainda teremos uma empregada é
só cobrar mais...
Débora também intervém, mas o tom
dela é tão ou mais aflito que o da mãe.
- E o que mais teremos que
economizar papai?
- Os telefones, o de casa e os
celulares...
- Você vai nos tirar os
telefones? Por que não faz logo uma rifa? Não é para ser pobre? Faz logo um
bazar...
- Luciana, eu não estou falando
que precisamos ficar sem eles, é só economizar nas ligações, usar só quando
estritamente necessário...
- Pai, a gente só fala o necessário...
- A Débora tá certa, pai, tenho
que ligar para as gatas, fica difícil convencê-las a sair em trinta segundos...
- Faça-o pessoalmente...
- Ele não tem coragem, começa a
suar e a gaguejar...
- Isso não importa...
- Tudo importa Sérgio, quer dizer
que quando eu ligar para a esposa do presidente do clube para tentar sermos
convidados para os principais jantares, terei que ligar a cobrar? Que
lindo...”...tam...tam...tam...você está recebendo uma ligação a cobrar...”...oi
Magda, desculpe ligar a cobrar, ridículo, isso é ridículo...
- Foi bom você ter falado do
clube...
Luciana olha para ele
horrorizada.
- O que tem o clube???
- Seria bom se pedíssemos uma
licença de seis meses...
- E o que os nossos amigos iriam
pensar? Que estamos pobres? Já sei, daqui para frente vamos comer só arroz,
feijão e farinha...
- Nem tanto, mas temos que cortar
os supérfluos...
- Vendemos os carros e andaremos
pendurados em ônibus...
- Nem tanto Luciana, mas
poderíamos vender pelo menos um...
- Vendemos nosso apartamento e
nos mudamos para a favela...
- Poderíamos ir para um menor,
com uma prestação e um condomínio mais baixo...
Débora se levanta, está tão
assombrada quanto a mãe.
- Pai, o senhor não está falando
sério né?
- Ele está só tirando uma da mamãe
Débora, não é velho?
Os três olham ansiosos para
Sergio, que fica constrangido, mas firme.
- Algumas medidas precisam ser
tomadas, sério, temos um padrão de vida muito alto, maior que a maioria das
pessoas...
- E vamos continuar assim,
querido, não temos nada a ver com os outros...
- Com o que eu ganhava dava para
a gente viver tranquilamente, mas agora...
- Mas por que não podemos
continuar? É só economizar um pouquinho, o senhor está exagerando...
- Não, não estou exagerando
Rubens, nosso gasto mensal é muito alto, temos a prestação do apartamento, o
condomínio, o financiamento dos carros, as mensalidades do clube e da escola de
vocês, contas de luz, de telefone, de internet, tv a cabo, alimentação, planos
de saúde, as empregadas, tudo isso é custo fixo, chova ou faça sol todo mês
temos que ter o dinheiro para pagar, ainda não temos um patrimônio nosso, uma
reserva financeira, tudo que eu ganhava era gasto...
- Logo você estará trabalhando,
não podemos nos desfazer de tudo, e se daqui a uma semana já estiver empregado?
Concordo com o Rubens, vamos cortar alguns gastos bobos e pronto, não se fala
mais nisso...
- Mas, Luciana, assim o nosso
dinheiro não vai durar os três meses...
- Que dure um, é mais que o
suficiente...
- É paizinho, não esquenta...
- Mas, Débora...
- Mais nem menos, ela está certa,
todos estamos certos, quer dizer, menos você, agora crianças vão se arrumar,
vamos ao shopping nos distrair, um gastinho a mais não vai fazer tanta
diferença assim...
- É isso aí mãe, vou tomar meu banho
e ir a busca do meu skate...fui...
- Vou nessa também, espera aí
mano...
Sérgio suspira entre desanimado e
desconfiado.
- Só espero que vocês tenham
razão...
- o -
Sergio fala ao telefone,
demonstra nervosismo e ansiedade, caminha de um lado ao outro da sala.
- Sim, Sergio Oliveira, fiz a
entrevista ontem com o senhor Gilberto, poderia falar com ele por
favor...ocupado? Foi ele que me pediu para ligar, disse estar tudo praticamente
acertado...como já foi preenchida? Tudo bem eu compreendo, obrigado...
Desliga o telefone, pensativo e
desanimado, Luciana entra na sala de forma intempestiva, um furacão prestes a
começar a devassar tudo que encontrar pela frente.
- Vergonha! Nunca passei tanta
vergonha em minha vida...
- O que houve afinal?
- Estava no shopping com a
Clarinda Lisboa, você sabe, a esposa do desembargador, fui comprar uma bolsa, a
minha já estava nas últimas...
- Mas eu te dei uma bolsa no teu
aniversário...
- Do que você está falando? A que
você me deu já não uso há muito tempo, estou falando da que comprei no mês
passado, já a usei mais de duas vezes, quer que pensem que só tenho uma bolsa?
- Não acredito...
- Nem eu consigo acreditar,
escolhi a bolsa, linda, só oitocentos reais, fui passar o cartão, imagina só?
- Bloqueado...
- Você sabia disso e não me
avisou? Como teve coragem?
- Eu falei para você que não tínhamos
pago a fatura...
- E por que você não paga logo
essa mixaria?
- Por quê? Porque não temos
dinheiro, eu tinha que escolher entre a prestação do apartamento e o resto...
- E você fica aí parado nessa
tranquilidade? Por que não arranja logo outro emprego?
- E o que você acha que estou
tentando fazer todos esses meses? Já mandei uma montanha de currículos, já fiz
várias entrevistas e nada, você pensa que é fácil arranjar um emprego onde eu
ganhe o suficiente para manter o nosso padrão de vida?
- Você tem que se virar, hoje os
nossos amigos vêm jantar aqui, aperte o Oscar, ele prometeu te arranjar um...
- Ele não é obrigado...
- Por que você não faz um
empréstimo pelo menos para pagar as contas atrasadas, os carros, os cartões...
- Já pensei nisso, fui ao banco e
falei com o Moacir, ele veio com um monte de desculpas e terminou dizendo que
eu quitando o que devo no especial e os cartões, ele depois dá um jeito de
aumentar os limites, “só isso” que ele pediu...
- Eles viviam te oferecendo
coisas, limite maior, cartões, empréstimos...
- Isso era antes, eu tinha
dinheiro, influência, eles só oferecem dinheiro para quem já tem dinheiro, quando
não, eles se fazem de desentendidos, não atendem mais os telefones, não
retornam os recados...
- Pede emprestado para o Oscar ou
para o Fernando, eu lembro muito bem que quando eles estavam começando você os
ajudou e muito, indicando clientes, abrindo várias portas, você foi até
avalista de um empréstimo que o Oscar fez, lembro muito bem disso...
- Tenho vergonha, seria abusar da
nossa amizade...
- Se fossem estranhos eu até
concordo, mas são nossos amigos...
- É...vou pensar...talvez vocês
tenha razão...
- Faça isso, e vê se pede um
pouco a mais, assim posso comprar a minha bolsinha...
- Você não tem jeito...
- Bom, vou começar a me
aprontar...
- Vou dar mais uma olhadinha no
jornal, quem sabe tenha passado algo despercebido...
Luciana, já mais calma vai se
preparar para receber seus convidados, mas a tempestade ainda não passar,
chegam os filhos, com o gênio da mãe, Débora, nem se preocupa em cumprimentar
ao pai.
- Pai, tem algo errado com meu
celular...
- Com o meu também pai, não
consigo nem ligar e nem entrar na internet...
- O meu também está assim
crianças, ainda não consegui pagar as contas...
- Xiii...a mãe vai chiar
adoidado...
- O dela está pago Rubens, assim
eu consigo uma trégua...
- Pai o senhor falou que o nosso
dinheiro iria durar três meses...
- Só que tínhamos que fazer
alguns cortes, Débora, lembra?
- E o nosso colégio pai?
- Esse mês está pago, o próximo
ainda não sei como vamos fazer meu filho...
A sabatina não termina, assim
como a pressão, Sérgio tenta manter a calma, afinal seus filhos não têm culpa,
bem, pelo menos assim ele pensa. É a vez de Débora.
- E o clube?
Sérgio suspira, sabe que aquela é
a pior parte, a mais difícil, pode faltar até comida, mas o clube...
- Ainda não consegui pagar...
A filha põe as mãos na cintura,
de relance ele chegou a pensar que fosse a esposa.
- Mas pai! Eles pedem o recibo na entrada, amanhã tem
balada, o Rubens fala alguma coisa...
- Eu já combinei com a galera
toda...
- Filhos vocês têm que
entender...
- Entender o que? O senhor que é
o culpado, por que não arranja logo outro emprego?
- A Débora tem razão pai, parece
que o senhor gosta de ficar parado, e a gente é que sofre...
É a vez do pai se levantar e
colocar as mãos na cintura.
- E vocês lá sabem o que é
sofrer? Na sua idade Rubens eu já trabalhava há muito tempo, e ajudava meus
pais...
- E os meus estudos? Como vou
trabalhar e estudar?
- Deixa Rubens, vamos falar com a
mamãe, eu vou ao clube amanhã de qualquer jeito...
- Vocês não são mais crianças,
procurem entender...
- O senhor é que não entende, sem
celular, sem clube, e os nossos amigos? Vamos Débora, vamos logo falar com a
mamãe...
Eles saem sem nem mesmo voltar a
olhar para o pai que suspira, não ainda não, por vezes o mau tempo se estende,
fazendo estrago, levando tudo que tenta enfrenta-lo. Soraya, a empregada, entra
timidamente na sala.
- Seu Sergio...
Ele levanta os olhos, tenta
sorrir, não se deixa abater tão facilmente, sabe que não pode fraquejar, afinal
tem a consciência sua lucidez e discernimento são as únicas armas para vencer
aquele mau momento que passam.
- Oi Soraya, pode falar...
- Sabe o que é, depois que a
Maria foi embora, o senhor sabe, meu trabalho dobrou...
- Eu sei, só que infelizmente eu
não posso lhe dar um aumento, ainda estou desempregado...
- Não é isso seu Sergio, é que
bem...eu...sabe o que é...
- Pode falar Soraya, qual o
problema então?
- É que também tenho minhas
contas para pagar e até agora, o senhor sabe, não recebi o salário desse mês...
- Não recebeu? Mas deixei seu
salário com Luciana a semana passada...
- Deixou? Só que eu...
Como se tivessem a chamado,
adivinhando o perigo, Luciana entra repentinamente na sala, já pronta para o
jantar.
- Soraya! Vá ver como está o
jantar, nossos amigos estão para chegar, e você Sergio, está na hora de se
aprontar...
- Dona Luciana eu...
- Vá logo menina, está esperando
o que?
- Me desculpe...
Sai de sala cabisbaixa e silenciosamente.
- O que está acontecendo aqui
afinal? Como Soraya ainda não recebeu o salário? Onde está o dinheiro que
deixei com você?
- Um momento Sergio, você mesmo
sempre disse que sou a responsável pela administração da casa...
- Mas...
- Nem menos, se sou a responsável
não preciso dar satisfações, simplesmente desvie a verba para outras
prioridades...
- Desviou a verba? Deixe de
enrolação e diga logo o que você fez...
- Paguei o clube...
Ele salta do sofá, não consegue
acreditar no que ouviu.
- Você o que???
- O que você queria? Que todos
soubessem que estamos falidos? As crianças acabaram de me contar dos celulares,
que sacrifício você espera mais de nós?
- Sacrifício? Diga um único
sacrifício que tenha sido feito nesta casa desde que fui demitido...
- Há quase quinze dias estamos só
com uma empregada...
- Você acha isso um sacrifício?
Pelo amor de Deus! Simplesmente você então resolve pagar o clube e deixar uma
pessoa sem o seu sustento?
- E você acha que vou me
preocupar com isso? E essas grandes empresas, hospitais e até prefeituras que
atrasam os salários de seus empregados? Você acha que os donos ou os dirigentes
estão abrindo mão de um palito de fósforo do que estão acostumados por seus
empregados? Acorda querido, desde que o mundo é mundo a corda arrebenta sempre
para o lado mais fraco, se ela quiser ficar que fique, ou então vá receber na
justiça, não acredito que estamos perdendo nosso tempo com essa mixaria...
- Você é incrível, acha que
manter as aparências é mais importante que o sustento de uma família...
- Você é melodramático demais,
ela é casada, o marido dela que se vire, o que, alias, você deveria estar
fazendo...
- E você acha que não faço porque
não quero?
- Você já poderia estar
trabalhando há muito tempo, o Camargo lá do clube te ofereceu emprego e você
recusou...
- Emprego? Você chama gerenciar
entregas noturnas de combustível adulterado de emprego? Isso é crime!
- Só que ele vive muito bem,
todos o respeitam, foi até convidado para ser o diretor social do clube...
- Então acho melhor eu arrumar um
emprego de contador do tráfico de drogas, deve dar muito mais dinheiro, assim
vou poder até ser presidente desse maldito clube, está bem assim para você? Vai
poder comprar uma bolsa por dia, uma para ir da sala para o banheiro, outra do
banheiro para o quarto, agora se a Rainha da Inglaterra me der licença, vou me
arrumar, afinal nossos ricos amigos estão para chegar e devo estar limpinho,
bem arrumado e cheiroso para a hora que for pedir dinheiro emprestado para
eles, afinal tenho que pensar na mensalidade do mês que vem do nosso essencial
clube...
Sai da sala inconformado, ela
irritada senta no sofá.
- Droga, até quando teremos que suportar
essa miséria de vida!
- 0 -
Todos estão reunidos na sala,
Sergio, Luciana e os dois casais de amigos.
- Então é isso Sergio, infelizmente
a vaga que eu tinha te falado foi preenchida, parece que é um parente do
Diretor, aí fica difícil de encarar...
- Tudo bem Oscar, sei que você
tentou...
- Não esquenta Sérgio, logo
aparece algo...
- É que esse logo está demorando
demais para acontecer Fernando, as dívidas não esperam, nosso dinheiro...
Luciana interrompe o marido, as
aparências, sempre as aparências.
- Vocês querem beber algo mais?
- Eu não, obrigado...
- Estou com o Oscar, também estou
satisfeito, e amanhã tenho jogo de tênis no clube, se beber mais vou acordar
vendo duas raquetes, você vai Sergio?
- Não tenho cabeça para isso,
nossa situação...
Luciana mais uma vez interrompe,
os outros percebem, nuvens começam a surgir.
- Então, gostaram do jantar?
Iracema tenta ajudar a desfazer o
constrangimento que parece dominar a todos.
- O peixe estava maravilhoso...
Lourdes entra no clima, também
percebe a tensão no semblante de Sérgio.
- Sua empregada está de parabéns,
segura ela minha amiga, senão logo aparece alguém para roubá-la...
- Vai ser difícil levá-la, ela é
como se fosse da família...
- E a Maria? Foi embora?
Sérgio, infelizmente, não
consegue deixar de lado o sentimento negativo que o domina e cada vez mais o
controla.
- Nós tivemos que...
Luciana dessa vez ergue o tom da
voz, também consegue manter o controle por um fio.
- Nós tivemos que deixá-la ir,
foi visitar a família no norte, vocês sabem, bateu saudade...
- Soraya está fazendo tudo
sozinha?
- Por enquanto, Iracema, estou
procurando outra...
- Se você quiser eu falo com a
Isaura Moreira, ela deve conhecer alguém de confiança...
- Só que por enquanto...
- O Sérgio ia dizer que por
enquanto não queremos nos precipitar, Maria ficou de mandar uma sobrinha...
Todos ficam em silêncio,
constrangidos, ninguém mais consegue pensar em algo para quebrar aquele clima
que repentinamente se criou no ambiente, um clima de uma guerra prestes a
eclodir.
- Ontem eu tentei te ligar
Sergio, queria te convidar para almoçar, mas teu celular só dava caixa
postal...
- Sabe o que é, Oscar, o meu
celular está...
- Quebrado, o Sergio é descuidado
demais, deixou cair...
Sergio se levanta, com a voz
alterada.
Cortado! Meu celular está cortado
por falta de pagamento, Oscar, e a Maria, Iracema, foi demitida porque não
tínhamos dinheiro para pagar seu salário, e eu não estou indo no clube,
Fernando, porque não tenho tranquilidade necessária para me distrair e fingir
que nada está acontecendo, e só estamos ainda com a mensalidade em dia porque
Luciana resolveu “desviar a verba” destinada a pagar o salário da nossa
empregada, empregada não, afinal ela praticamente “faz parte da nossa família”,
mas não tão valorizada em suas funções...
Um silêncio mortal toma conta do
ambiente por alguns segundos. Fernando é o primeiro a se manifestar, sempre
mais amigo, mais solidário, mais equilibrado.
- Eu não sabia que a situação de
vocês estava tão ruim assim...
Luciana mal consegue conter ar
lágrimas, está pálida de vergonha.
- E não está, Sérgio é pessimista
demais...
- Realista você quer dizer, não
sabia que é pessimismo demais não ter dinheiro para pagar as contas...
- Sergio, por favor, você quer me
envergonhar na frente de nossos amigos?
- Deixe disso Luciana, você disse
muito bem, somos seus amigos, isso é apenas uma fase ruim, vai passar...
- Vai sim, Oscar, mas está
demorando um pouco demais para passar...falando nisso...
Sergio, fraqueja, fica indeciso,
Luciana com um gesto o incentiva a falar.
- Fala logo homem, engasgou a
marcha...
- É que é muito difícil para mim,
Fernando, mas gostaria de saber se vocês não teriam um dinheiro para me
emprestar, logo que começar a trabalhar eu pago, é só uma questão
emergencial...
Oscar reage imediatamente, sempre
mais prático, mais direto, sempre certo em suas ponderações, sempre com a
razão.
- Da minha parte Sergio eu peço
desculpas, só que no momento também não disponho de recursos extras, estamos
mal e mal arcando com nossas despesas, você sabe como está o mercado
financeiro, totalmente retraído...
- Eu imagino...
- Para ter uma ideia tivemos que
adiar nossa viajem à Europa para o mês que vem, é horrível...
- Bem lembrado querida, e além do
mais, na minha forma de pensar, um empréstimo é a pior ajuda na situação que
vocês estão passando, cria uma falsa sensação de solução e não resolve nada, e
a dívida de vocês só vai aumentando, é uma bola de neve, o melhor remédio agora
se aguentarem com o que tem, a verdade as vezes parece cruel, mas é o melhor
remédio, força vocês a tomar uma atitude mais incisiva, força a correr atrás,
vou ajudá-lo a arrumar emprego, é a melhor maneira...
Instintivamente todos olham para
Fernando.
- Bem, no momento eu posso
dispor...
A esposa o interrompe.
- De nada, estamos economizando
para comprar nossa casa de praia, é um antigo sonho, realmente lamentamos não
poder ajudar agora, mas vamos continuar torcendo para que essa fase passe
logo...
- Sim, estaremos sempre pronto a
motiva-los...
Sérgio sorri timidamente, está
constrangido pelo constrangimento que fez a todos passarem.
- É claro, eu compreendo...
Luciana tenta de vez acabar com
aquele clima.
- Desculpem este constrangimento
desnecessário, Sergio é muito exagerado, não canso de dizer...
- É mesmo, devo estar estressado,
nossa situação não é tão ruim, logo tudo estará igual como antes...
Todos permanecem em silêncio, a
campainha toca, e em poucos instantes Soraya entra na sala.
- A senhora quer que eu vá...
Luciana a fuzila com o olhar.
- Estou indo atender...
Logo depois retorna, assustada e
esfregando as mãos.
- É um senhor, disse que é
oficial de justiça, acho que veio buscar os carros, não entendi muito bem...
- Ai, meu Deus...
Luciana cai no sofá, desmaiada, todos
correm para acudi-la, Sergio fica de pé, estático, sem saber o que fazer.
- 0 -
Soraya anda de um lado ao outro
da sala, aflita, esfregando as mãos, Sérgio entra em cena.
- Olá Soraya, estava me esperando?
Por mim não precisa se preocupar com o jantar, estou sem fome, e Luciana e as
crianças, onde estão?
- Não estão, se foram...
- Saíram? Só pode ter sido para
gastar o dinheiro que não temos, isso é coisa da mãe dela, contínua financiando
os luxos da filha e dos netos, e o pior é que não posso fazer nada, é muita
humilhação, é um sapo tão grande que está difícil de engolir, não consigo
sustentar minha própria casa, pelo menos não do jeito que eles querem, já
deixai de aceitar várias oportunidades de emprego porque o salário não dava nem
para a metade da vida “nabesca” da minha família, e minha sogra se aproveitando
disso entrou de vez nas nossas vidas, ajudando-os a manter a ilusão, fazendo
questão de mostrar o quanto sou incapaz...bem...pelo menos o seu salário está
em dia, mas não agradeça mim, e sim a minha “adorável” sogrinha...
- Seu Sérgio o senhor não
entendeu bem, eles se foram, e eu estava só esperando o senhor chegar para ir
também...
- Se você precisa pode sair
Soraya, não vou precisar de nada hoje...
- Não é sair, é ir, Dona Luciana
e as crianças foram para a casa da sua sogra, e eu tenho ordem de ir também, hoje
a tarde levaram todas as roupas...
- O que você está dizendo? Isso
não é possível!
Corre para o interior da casa,
vasculha os quartos, as gavetas, tudo vazio, volta a sala, desanimado, deixa-se
cair no sofá. Soraya continua onde está,
esfregando as mãos, constrangida, penalizada.
- O que aconteceu aqui afinal?
- Não sei de nada seu Sérgio, só
fiquei por causa do senhor, só para dar o recado e dizer onde estão as coisas, quer
que eu mostre para o senhor?
- Pode ir embora Soraya, tenho
certeza que Luciana precisa de você muito mais que eu...
Ela sem responder pega uma mala
que está próxima a porta e timidamente acena, sem conseguir dizer mais nada,
sabia bem o que aquele homem deveria estar sentindo. Ele, nervoso, pega o
telefone.
- Alô, Dona Norma? Luciana está
aí?...Dona Norma não vou discutir esse assunto com a senhora, eu quero falar
com a Luciana, por favor...Luciana? O que houve afinal? E as crianças?...só
porque chegou uma ordem de despejo você abandona nossa casa? Vou renegociar a
dívida, não é assim como você pensa...eu, vagabundo? Isso são palavras da sua
mãe não suas...acomodado? Você acha que estou feliz por ver a sua mãe
sustentando a nossa casa?...ela quer pagar as prestações atrasadas? Nem pensar,
vou dar um jeito...ela já mandou pagar? E com ordem de quem? Venha para cá
agora e vamos discutir esse assunto, como tem que ser, pessoalmente, traga logo
as crianças de volta para casa...o que? Que condição?...está bem...espero
vocês...
Ele desliga o telefone e olha a
sua volta, sabe que a última gota daquele martírio que se estende há meses está
prestes a cair.
- 0 -
Sérgio está de pé, nervoso,
Luciana sentada displicentemente no sofá.
- Onde estão as crianças? Até
quando você vai ficar aí calada, como abandona o nosso lar sem mais nem menos?
- Da mesma forma que você nos
abandonou nesta situação humilhante, se não fosse minha mãe onde estaríamos
agora? Debaixo da ponte? Esmolando pelas ruas?
- Não, é só fazer o que já venho
falando há muito tempo, basta que nos adequemos a uma vida mais regrada e
simples, e assim com tranquilidade vamos nos recuperando aos poucos...
- Você só pode ter enlouquecido!
É um pobre, um derrotado, e quer que eu seja como você, e o pior, quer que
nossos filhos sejam como você, minha mãe tem razão, você não quer a nossa
felicidade, quer apenas nos humilhar, sei que você nunca se conformou de eu vir
de uma família rica, enquanto que você sempre foi pobre! Meu Deus! Como não
percebi isso antes? Sempre fomos pobres, nunca tivemos nada nosso, nem carros,
nem casa, para mim chega! Não aguento mais tanto sofrimento...
- Que sofrimento é esse? Você lá
sabe o que é sofrer? O máximo que você sofreu na vida até hoje foi ter quebrado
a sua unha no dia do nosso casamento, até hoje eu lembro o rio de lágrimas, meu
Deus, quanto sofrimento! Enquanto milhões de pessoas não tem o que comer a
“rainha” entra em colapso emocional por causa de uma unha...
- E o que eu tenho com essa
gente? O governo que se vire para alimentar essa cambada de vagabundos, você
acha que vou ficar feliz por ser pobre porque existem miseráveis? Que vou me
conformar de perder um braço porque existem pessoas que não tem os dois? Se
conforme você com sua pobreza, com sua honestidade, não é isso que quero para
mim, não é isso que mereço, nem eu e nem meus filhos...
- Realmente as vezes a vida
precisa nos dar um choque para que venhamos a enxergar a realidade, na verdade
nada temos um com o outro, você nunca me amou, amava o tipo de vida que nós
levávamos, clube, chá beneficentes, bolsas, roupas e cabeleireiros, sempre
preocupada com que os outros vão dizer, com que os outros vão achar, só se
casou porque a maioria das suas amigas já tinha casado, lembro da correria que
foi para que casássemos antes da Carla e do Robson...
- Eu amo essa vida que mal a
nisso? E você, me ama? Também acho que não, é um acomodado, sempre foi e sempre
será, um fraco, um derrotado, por isso tenho certeza que a condição que a minha
mãe impôs para quitar nosso apartamento vem bem a calhar...
- Ah sim como pude esquecer a
condição da minha queira sogrinha, o que a majestade exige afinal?
- Ela quitará o apartamento desde
que eu me separe de você e o apartamento fique no meu nome...
- Só isso??? Quem ela pensa que é
para querer dispor das nossas vidas desse jeito?
- Ela é minha mãe e a avó dos
meus filhos, ela só quer o melhor para nós...
- Espere um pouco, estou
entendendo mal ou você...
- Eu aceitei...
- E você termina o nosso
casamento assim? Na base da troca, um casamento de quase vinte anos por um
apartamento? Você trocou o NOSSO casamento pelo NOSSO apartamento?
- Mamãe sabe que você já pagou
mais da metade das prestações, ela vai lhe ressarcir tudo...
- Eu não quero um real da sua
mãe, pode ficar com tudo, apartamento, móveis, tudo...e os nossos filhos? O que
acham dessa loucura? Já sabem?
- Eu expliquei tudo para eles,
também aceitaram e concordaram, sabem que nós dois não temos mais nada em comum,
você vai poder vê-los quando quiser, e saiba que enquanto você estiver
desempregado eu não vou cobrar pensão nenhuma de você...
- Nossa, como você é bondosa, ou
seja, ridícula, já sei, uma bondosa ridícula fica melhor...
- Ridícula ou não é assim que vai
ser, e caso você não concorde com o divórcio ele será litigioso, não me
importo, várias amigas minhas já passaram por isso...
- Ah entendi, o que está na moda
agora é o divórcio, não mais o casamento, e você não quer ficar pra trás, mas
não se preocupe, o que eu não tenho é dinheiro, porque vergonha na cara ainda
tenho bastante, prepare tudo que eu assino, quanto aos meus filhos, hoje mesmo
vou falar com eles, para que possam ouvir uma versão um pouco diferente do que
a sua e a da sua mãe, vou arrumar as minhas coisas e sair agora mesmo da “sua” casa...
- Não precisa sair correndo, por
isso fomos para casa da mamãe, para você ter tempo para arrumar um lugar
primeiro...
- Não se preocupe, tem um monte
de lugar por aí para caras fracassados e acomodados como eu, taí acabei de ter
uma excelente idéia, quando a turma das dondocas se reunir de novo fale para
fazerem um chá beneficente em prol dos acomodados...vai ser um sucesso...
Saí da sala sem mesmo a olhar.
- 0 -
Periferia da cidade, na entrada
da padaria várias mesas ocupadas, naquela hora da manhã, por aqueles que,
esperando o horário da condução, tomam seu café. Em uma das mesas, tranquilo, Sérgio
lê seu jornal, olha o relógio, ainda tem tempo, seu transporte ainda deveria
demorar meia hora para passar. Na calçada, caminhando apressado, está passando Oscar,
que ao ver o amigo na padaria tenta disfarçar e apressar o passo, mas Sérgio
também o vira, e não permite sua fuga.
- Oscar, quanto tempo! Não me
reconhece mais?
- Sergio! Quase não o reconheci,
acho que já vai fazer um ano que não nos vemos...
- Na verdade quase dois, mas
vamos, sente-se, venha tomar um café...
- É que estou atrasado, deixei
meu carro aqui perto para lavar, deve estar pronto...
- Que é isso, é só um café, pode
sentar, eu tenho dinheiro para pagar, não se preocupe...
Oscar senta, constrangido,
olhando para os lados, meio assustado com as pessoas a sua volta. Sérgio sorri,
percebe o medo do amigo, medo de pessoas que não se vestem e não se portam como
ele, e que não tem um carro igual o dele sendo lavado no lava jato ali próximo.
- Ei José, traz mais um café, por
favor, meu amigo não pode perder tempo...
- Que é isso Sergio, é que estou
com pressa mesmo...
- Claro, o mercado financeiro não
pode esperar...
- Vejo sempre a Luciana e as
crianças...
- Sim, a vida social deles
continua intensa, jantares, festas, clubes...
- Puxa cara, você está muito
amargo...
- José traga bastante açúcar, o
meu amigo não gosta de nada amargo...
- Você vem sempre “aqui”?
- Moro “aqui” perto, a perua da
empresa passa as nove horas para me pegar...
- Você está trabalhando? Que
bom...
- Sim, desde que me separei...
- E é uma multinacional? Talvez
nosso escritório invista nas suas ações...
- Não, é uma pequena empresa,
terceirizada, quinze funcionários, fica na zona industrial...
- Trabalhar longe do centro deve
ser ruim, cansativo...
- Não, é muito bom, estou muito
bem, a empresa está em expansão, estamos crescendo juntos, o salário não é lá
essas coisas, mas dá para levar uma vida tranquila...
- Então você mora aqui perto...
- Sim, em um quarto e sala...
Um silêncio constrangedor entre
ambos, daqueles que, pretensamente amigos, quando um tempo distantes, percebem
que não tinham assim tanta coisa em comum.
- Você sumiu, nunca mais foi ao
clube, não é só porque se separou que tem que esquecer os amigos...
- Eu não sou mais sócio do clube
e você sabe muito bem disso...
- Poderia ter ido lá em casa,
sabe que teríamos um grande prazer em recebê-lo...
- Oscar sabe o que eu sempre mais
admirei em você?
- Minha beleza helênica?
- A sua sinceridade, sua
franqueza, por vezes até “cruel”...
- Eu sempre fui assim...
- Então, por favor, continue
sendo, você não teria o menor prazer em me receber na sua casa, como não está
tendo nenhum prazer em estar sentado agora “aqui” nesse bar tomando um café...
- Que é isso Sergio, eu...
- Se eu não tivesse te chamado
você teria fingido que nem tinha me visto...
- Eu...eu...
- E sabe por quê? Não é porque
fui excluído do clube, ou excluído dos jantares e das festas, simplesmente
porque não fui excluído, eu sou um excluído, um excluído da sua classe
social...
- Você sabe como é o nosso
meio...
- Não sabia, mas agora sei, o
“seu” meio, ou seja, os ricos e os que aparentam ser, os “emergentes”, pensam,
e o pior, criam seus filhos para que também pensem e acreditem, que o “eu” é
mais importante que o “nós”, mesmo que para isso precisem atropelar o vizinho,
agir e se precisar, coagir, para se manter no topo, para conseguirem tudo que é
“essencial” para subsistir no seu “meio”, toda a parafernália que determina o
quanto vale uma pessoa, o quanto ela merece de respeito, não importando a
procedência do seu “sucesso”, esse é o estereótipo do seu “meio”, fútil e em
boa parte das vezes, imoral, indecente, valorizando cada vez menos o que um ser
humano, rico ou pobre, deve ter como prioridade, o seu caráter, o seu “meio” é
formado por um círculo cada vez menor, cada vez mais apertado, fechando-se em
uma redoma invisível, separando cada vez mais as classes, aumentando cada vez
mais o número de excluídos do seu “meio”...
- A vida é assim mesmo Sergio,
você só está com esse discurso barato porque não conseguiu se manter em nossa
posição, perdeu, caso contrário, em vez de estarmos aqui agora nessa espelunca,
estaríamos em uma choperia, em um empório, tomando uma gelada, discutindo sobre
futebol, sobre mulheres, sobre a vida dos outros, você só está revoltado porque
não faz mais parte do time, e me desculpe, por sua própria culpa, sua própria
incapacidade de reação...
- Agora sim o Oscar que conheço
se apresentou, sim, reconheço que por minha exclusiva culpa me deixei levar, me
deixei arrastar pela onda, fui por um bom tempo mais um teleguiado, perdi meu
poder de discernimento, passei a achar certo tudo os que os outros achavam
certo, sem questionar, sem avaliar se era isso mesmo que eu queria para minha
vida, também fui uma marionete do sistema...
- Você sempre me emociona com
seus discursos pedantes e populistas, então sua felicidade era ter vivido com
sua família em um barraco, movido a feijão e farinha, seus filhos vendendo
flores no semáforo para ajudar no orçamento, assim tudo teria dado certo? Nós
não temos culpa da vida ser assim! Não há diferença de ideias ou ideais nas
diferentes classes, tanto entre os ricos como entre os miseráveis, é cada um
por si, cobra engolindo cobra, tenho que pensar sempre em ter o melhor para mim
e para minha família, os outros que pensem e que façam a mesma coisa, eu não
darei o que é meu de direito só para que haja uma aparente justiça social, querendo
ou não existe a diferença intelectual, a diferença social, quem pode mais chora
menos...
- O problema não é a diferença
intelectual, mas a diferença moral, a imposição do mais forte sobre o mais
fraco, a mesma lei com pesos diferentes de acordo com o poder do dinheiro, ninguém
quer igualdade, isso é utopia, mas sim a diminuição da distância, cada um tem
seu valor dentro daquilo que faz e merece respeito por isso, quando eu disse
que errei foi porque me deixei levar pelos desvarios de Luciana, acostumada
antes de nos casarmos a um padrão de vida que eu já deveria ter logo percebido
que seria impossível manter, em vez de construir um lar em bases sólidas, quisemos
começar a nossa existência em comum pelo telhado, era previsível que aconteceria
o que aconteceu, a primeira tempestade fez tudo desmoronar e virar escombros...
- Você não pode culpa-la, se você
não tivesse perdido o emprego nada disso teria acontecido...
- Mas é isso exatamente o que
estou falando, tudo que construímos estava na dependência exclusiva do meu
emprego, algo bem fácil de perder em nosso país, não acha? Como viver em
tamanha dependência? Realmente se não o tivesse perdido, teríamos continuado a
viver no nosso mundo de ilusões, tendo tudo e não possuindo nada, um castelo de
papel que qualquer brisa poria abaixo, sim, fui o culpado, o certo deveria ter
sido comprarmos um apartamento menor, já quitado, termos um único carro para a
família, ter apenas uma empregada ou talvez uma diarista, procurado escolas
boas, mas com um custo menor para nossos filhos, ter celulares e roupas mais
simples, viver apenas com as dívidas essenciais, e assim, mesmo ficando
desempregado, poderia mais facilmente ter arranjado outro emprego, onde
ganhasse menos, mas que daria para manter nossa subsistência até que arranjasse
outro melhor, cresceríamos aos poucos, mas cada conquista seria real e
duradoura, e meus filhos, provavelmente, teriam aprendido a dar mais valor para
a vida e para o que realmente nela importa para se encontrar a felicidade...
- E ensinaria a seus filhos a
serem pobres conformados, como a maioria, a não serem ambiciosos...
- A ambição na vida é sadia e
sempre necessária, desde que sejamos nós a dominá-la e não ela a nos dominar, é
com ela que evoluímos, mas precisamos saber que nascemos em um berço normal,
não de ouro, e que dependeremos sempre do suor do nosso trabalho honesto para
viver decentemente, aprendendo a superar dificuldades, para depois de cada
conquista estamos mais fortes e seguros...
- Não sei, acho estanho você se
conformar tão fácil com essa situação, perder tudo, o respeito de seus amigos,
de Luciana, de seus filhos...
- Respeito? Oscar, se para ter o
seu respeito e dos meus outros “amigos”, de Luciana e de sua mãe, se faz
necessário que eu tenha dinheiro, independente de sua origem, para manter luxos
e aparências, eu, sem querer magoá-lo, dispenso, e estou passando hoje muito
bem sem ele, prefiro viver com meus princípios do que com seu respeito, e se
amanhã eu voltar a ter o poder aquisitivo que tinha antes...
- Torcemos para isso, acho que
até Luciana te aceitaria de volta...
Sérgio suspira e sorri.
- Se isso vier a acontecer,
preste bem atenção, se eu conseguir, isto é, quando eu conseguir, depois de
tudo que passei e estou passando, do “apoio” que recebi dos meus “amigos”, da
Luciana e da mãe dela, do gerente do banco, dos meus antigos clientes e
fornecedores que viviam me paparicando, com exceção de meus filhos, que por sua
juventude e da forma que foram criados não posso culpá-los, quero que todos
vocês, todos juntos, com todo respeito, é claro, tipo assim, se fodam...
Quem vence, por alguns instantes,
é o silêncio.
- Eu desculpo você por sua
irritação, pois ainda me considero seu amigo, sei que você está em uma fase
difícil, não está pensando direito, que logo vai voltar a ter uma vida
normal...
- Normal? Eu estou normal, eu
levo uma vida normal, não vê? Desça desse pedestal, saia desse aquário, tente
respirar aqui fora, a vida é muito mais que você imagina, aqui não é uma
espelunca, é um bar de pessoas simples, com clientes simples, que como você
também têm os seus momentos de lazer e problemas para resolver, mas que quando
têm amigos, os têm de verdade, são pessoas normais que levam uma vida normal, talvez
seus filhos não possam ir todas as noites em um clube, talvez não tenham um
celular de última geração, mas brincam e se divertem como os seus, se vocês
preferem se trancar em suas mansões, em suas coberturas, se preferem excluí-los
do seu “meio”, isso não quer dizer que não tenham uma vida normal...
- Lá vem você com esse papo de
exclusão social, os que vivem as margens da sociedade são aqueles que gostam de
se fazer de vítimas, para viverem a custa dos outros, a custa do governo, sem
precisar trabalhar...
- E você acha que os excluídos
são só aqueles que vivem na miséria? São pedintes? São vagabundos? São muito mais do que você imagina, que você
consegue enxergar do seu pedestal, excluído é aquele que por mais que trabalhe,
mal consegue pagar seu aluguel, que por algum motivo teve sua renda mensal
diminuída, que vive de subempregos, explorado porque sua condição permite que
pessoas inescrupulosas o explorem, não lhe dando registro em carteira, não lhe
dando os benefícios que a lei garante, porque sabem que eles se agarrarão a qualquer
coisa para sustentar sua família, é aquele que tem todas as portas fechadas,
porque o que vale é a lei do mais forte como você diz, quem mais tem mais
recebe, e quem não tem, menos ainda terá, é aquele que começa a atrasar suas
contas e logo é rotulado de caloteiro, de mal pagador, seu nome vai parar em
todas as listas, até empresas deixam de contratar quem tem seu nome nelas, ou
seja, ele nem mesmo consegue trabalhar para pagar o que deve, você acha que
todos que são despejados, que perde seus bens, são vagabundos, estão felizes
por viver assim?
- É mais fácil para eles dar o
calote...
- Calote, Oscar, quem dá é o
governo, os bancos que quebram, os empresários que não recolhem o INSS e o FGTS
de seus empregados, os empresários que pedem concordata não sem antes passarem
a maioria de seus bens para terceiros, esse sim são os verdadeiros caloteiros,
e esses sim são respeitados, muitos deles sócios e diretores do seu clube,
tratados com deferência aonde vão, conseguindo empréstimos vultuosos, para darem
calotes ainda mais vultuosos, agora a maioria dos “vagabundos”, dos pobres,
briga, luta, corre atrás, refinancia a dívida,
devolve o bem, e no final acaba pagando, só para ver seu nome limpo, suportando
um monte de humilhações neste período difícil da sua vida...
- Apesar de não concordar com
esse blá...blá...blá...de quem perdeu o jogo, eu acho que você não deveria ter
abandonado seus amigos...
- Ah, claro, eu deveria ter
continuado a freqüentar os “points” da nossa turma, e logo que peguei meu
primeiro salário deveria ter voltado correndo para o “clube”, mas você me fez
pensar, durante este tempo qual de vocês me procurou? Ninguém? E quer saber por
quê? É simples, caso eu estivesse em uma cama de hospital, doente, todos vocês iriam
correndo me visitar, iriam até disputar uma vaga no quarto e qual levaria o
melhor arranjo de flores...
- É claro que sim, para isso que
servem os amigos...
- É “meu amigo”, só que minha
enfermidade, apesar de não ser contagiosa, era uma doença que afastou todos de
perto, dela os “amigos” fogem como se fosse uma praga mortífera, era a doença
do bolso, financeira, aí nessas horas, sai de baixo, é cada um por si e Deus
por todos, e é esse o único e verdadeiro amigo do homem moderno, ou será de
todos os tempos, o “dinheiro”...
Se aproxima da mesa deles um
senhor de idade avançada, caminha lentamente, veste-se humildemente, tímido, se
dirige até eles.
- Bom dia, por favor, me desculpe
incomodá-los, é que vim do posto do INSS aqui perto, cheguei cedo, as quatro da
manhã, e só sai agora, eu sei que é constrangedor, será que poderiam me ajudar,
estou sem o café da manhã...
Oscar se sente incomodado, tira
algumas moedas do bolso e joga sobre a mesa.
- Oitenta centavos já ajuda em
alguma coisa vovô, é só arranjar alguém para inteirar, o INSS deveria dar café
para vocês, o governo que é culpado por este descaso, enquanto não mudar a...
Sérgio o interrompe.
- Desculpe senhor...qual seu
nome?
- Paulo...
- E o meu é Sergio, este é o
Oscar, então seu Paulo, por favor...
Puxa uma cadeira e o faz sentar.
- Sente-se conosco e descanse um
pouco, eu imagino como deve estar cansado, vi o tamanho da fila quando passei
por lá...ei José! Traz um pingado e dois pães com manteiga...
- Não sei como agradecer seu
Sergio...
- O senhor não me deve nada, só
os seus cabelos brancos e suas rugas já mostram o quanto o senhor já fez por
todos nós, o senhor é que precisa nos desculpar por fazê-lo passar por essas
humilhações depois de tanto esforço e suor por este país...
Oscar se levanta de forma brusca.
- Bem, tenho que ir, foi um
prazer revê-lo Sérgio...
Estende a mão, Sérgio ignora e
sorri.
- Não precisa de seu verniz
social comigo “amigo”, sei que não foi nenhum prazer me rever, sejamos
honestos, um dia uma pessoa me disse que as vezes a verdade é cruel, mas é para
nosso bem...
Oscar irritado vira as costas e
sai da padaria.
- Ah, e não esqueça o recado para
os meus amigos...
Oscar se volta antes de chegar a
calçada.
- Recado? Que recado?
- Você sabe...aquele foda-se...
Oscar sorri e balança a cabeça,
seguindo seu cainho.
- Bem, então seu Paulo, diga-me
lá, o senhor acha que vai chover?
“Seu” Paulo sorri e segura as
mãos de Sérgio entre as suas.
- Sabe filho, por mais que a
tempestade seja forte, sempre encontraremos um lugar, por mais humilde que
seja, para nos abrigar até que ela passe, e ela, pode acreditar, sempre
passa...
- Eu acredito seu Paulo, e uma
árvore, forte, com raízes profundas, por mais que vergue, por mais fortes que
sejam as rajadas do vento, ela nunca quebra, ela luta, ela resiste, ela vence,
de pé!
FIM