sábado, 22 de novembro de 2014

"O Bonzinho"




Essa é uma obra de ficção, qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais, mesmo em relação ao conceito apresentado na história é evidentemente mera coincidência, e é claro que são impossíveis que situações como estas aconteçam, bem como, que os personagens que delas participam possam existir...tá bom...



“O Bonzinho”




  
Em uma prateleira de um armário costuma-se guardar tudo aquilo que, no momento, não mais tem serventia, mas, que nunca se está seguro que não mais se irá precisar.

Podem ser papéis, álbuns de fotografias, livros, bolas, cadernos, documentos, ferramentas, pregos, parafusos, manuais de equipamentos, guardados por tempo indeterminado, sobrevivendo à várias limpezas e arrumações, podendo ser dias, meses, anos, as vezes uma vida inteira, esquecidos, amontoados, até que deles se precise, sendo então, retirados, usados, manipulados, até o dia que se chegue a conclusão que não são mais necessários, sendo, sumariamente, descartados, dispensados, jogados fora, deixando espaço livre para novas coisas, novas perspectivas, novas situações.

Esta história inicia-se exatamente em uma prateleira, ou melhor, em um escritório, onde Maurício encontra-se engolfado e concentrado sobre uma montanha de papéis e informações.

Na sala ao lado, agitados, cada qual com sua razão, com seu problema, com seus planos, João Pinho e Estela conversam, trabalham, ou pelo menos, é o que deveriam estar fazendo:

- Então, Estela, preparada? O pessoal já está esquentando as turbinas, vai todo mundo para o Bar do Léo...

- Só que eu me dei mal João, o carrasco do meu chefe quer o bendito relatório para hoje...- muda o tom de voz, dengosa, cativante -...João Pinho, bem que você podia me ajudar, que tal?

- De jeito nenhum, já encerrei meu trabalho por esta semana, dá uma enrolada, faz na segunda...

- Você sabe que meu chefe não é mole, se fosse igual ao seu seria fácil, era só dar uma choradinha, como vou acabar isso hoje? Vou sair daqui que horas? Hoje é sexta-feira, dia internacional da cerveja, ninguém vai querer me ajudar!

- Tem certeza? Eu conheço a pessoa certa pra te salvar, um verdadeiro super-herói...

- Quem?

- Ora, quem é o cara mais “legal”, mais “bonzinho” do mundo?

Ela bate na testa, dá um salto, realmente existia um super-herói que adora salvar “donzelas” indefesas em apuros:

- O Maurício é claro! Como não pensei nele antes? O Maurício vai me ajudar, ele é tão bonzinho! Maurício! Maurício!

De um salto surge Maurício, sorridente, solícito, educado:

- Posso ajudá-la, Estela?

- É que estou com um “probleminha”, você está muito ocupado?

- Estou aprontando o meu relatório, tenho que entrega-lo ainda hoje...

- Deixa, não quero atrapalhar você...

- Que é isso! Pode falar o que você precisa...

- É que também tenho que entregar meu relatório e estou toda atrapalhada...

- Falta muito para terminar?

- Ainda nem comecei...

- Não esquenta Estela, eu te ajudo...

- Que é isso Maurício! E o seu?

- Deve dar tempo para terminar os dois...

- Então tá...- entrega a ele uma pilha de papéis - ...se não fosse você este escritório fechava...


- o -


Maurício entrega os relatórios para Estela, bem no momento que ela acabava de lixar suas unhas, afinal era sexta-feira, e ela precisava estar deslumbrante, como sempre:

- Pronto, é só entregar para o chefe...

- Obrigada, Maurício, estou tão cansada, o telefone não parou de tocar, desculpe não ter te ajudado muito, domingo é o aniversário de mamãe e a família inteira resolveu me ligar, vamos fazer uma festa surpresa...

- Que é isso, Estela...

João Pinho entra eufórico na sala, interrompendo:

- Estela, veja o que ganhei! Quatro convites para o show de hoje a noite, depois do Bar do Léo a gente “estica” pra lá...

- Que sorte, João!

- Eu adoro esta banda...- Maurício feliz pelo colega

- Pega Estela, só vou usar dois, fica com estes para você, convida alguém...

- Jura? Pra mim? Valeu, só não sei quem posso convidar...- pensativa -...quer ir Maurício?

- Eu não sei se vai dar, ainda tenho que terminar meu relatório...

- Que pena! Vou ver se o Oscar quer ir, vamos nessa João Pinho, daqui a cinco minutos já dá para bater o cartão, a “galera” já deve estar saindo para a “cerva”...

- Vamos nessa!

Eles saem rindo, Maurício com um sorriso tímido, volta para sua prateleira, ou melhor, sua sala.


- o -


Maurício lê um livro agora em outra prateleira, digo, em sua casa, enquanto que, em outra casa, um interessante diálogo acontece entre duas pessoas, entre um casal, são seus tios, Tio José e Tia Maria, sua família:

- Não sei como vamos pagar as prestações do carro, Maria, já vai vencer a terceira...

- Também o que te deu na cabeça José de trocar os móveis e comprar aquela televisão enorme logo agora?

- Agora a culpa é minha? Você foi toda feliz junto comigo comprar, lembra?

- Sim, só não podia imaginar que você fosse perder o emprego, quem mandou faltar tanto daquele jeito?

- Meu patrão que é um sem-vergonha! Eu levei atestado, Dr. Oscar me arranjou um de quinze dias...

- Pena que te viram na praia, não é mesmo? – irônica Tia Maria

- Foi aquele “dedo-duro” do César...

- Isso agora não importa, não podemos é ficar sem carro, o que as pessoas vão dizer?

- A financeira aceita um cheque para trinta dias, pena que nossa conta esteja encerrada, se arrumasse alguém que me emprestasse um cheque, tenho certeza que até lá arranjaria o dinheiro...

- Por que não pedimos para o Maurício? Afinal ele é seu sobrinho...

- Boa ideia! Ele é tão bonzinho!


- o -


Maurício está na porta, convida seus tios para entrar, surpreso com o inesperado da visita:

- Tio José, Tia Maria! Há quanto tempo não nos vemos, pensei que tinham esquecido que tinham um sobrinho!

- Que é isso, meu querido! Falo sempre para sua tia, precisamos visitar o Maurício, afinal você mora sozinho, é esta vida corrida que a gente leva, afinal, quem consegue arranjar tempo para alguma coisa?

- É verdade Tio José e vocês como estão?

- Nada bem Maurício, José está desempregado, vamos perder nosso carro...

- Que é isso, tia, ânimo, tudo se resolve, pena que no momento não posso ajudar...

- Acho que ninguém pode nos ajudar, pior é que fecharam a conta corrente do seu tio, era conta salário, senão tudo estava resolvido...

- Como assim, titia?

- Explica pra ele José, não entendo nada dessas coisas...

- É que a financeira aceita um cheque para trinta dias e eu tenho um dinheiro pra receber daqui a duas semanas, se alguém me emprestasse um cheque, estava tudo resolvido, se eles esperassem mais um pouco, nem ia precisar do cheque, mas o que eles querem mesmo é pegar o carro de volta, são uns malandros, gente honesta como nós nessas horas sai sempre perdendo...

- Bem...- Maurício ainda hesita -...eu tenho talão de cheque, só que estou sem saldo na conta, faz tempo que não movimento, mas se o senhor depositar o dinheiro na data certa, acho que não tem problema...

- Que é isso meu sobrinho? Não podemos aceitar, vai que aconteça algum problema, parece até que viemos aqui só pra isso! Deixa pra lá, Maurício, esquece isso, é só um carro...

- Que é isso, tia! Vocês dois são a única família que eu tenho, faço questão, não tenho dinheiro, mais se posso ajudar de outra forma...

- Mesmo assim...

- Maria, ele falou que faz questão!

- Eu confio em vocês...- o confiante Maurício -...daqui há duas semanas o Tio José me traz o dinheiro, eu deposito e pronto, está tudo em paz!

- Claro, Maurício, provavelmente até antes, é só eu receber e o dinheiro está na mão!

Tia Maria enxuga uma, não muito visível, lágrima.

- Não sei como agradecer, Maurício, você é tão bonzinho!


- o -


Ele toca novamente a campainha, ouvem-se vozes abafadas, uma breve discussão, finalmente a porta é aberta, Tio José sorri amarelo, com um gesto convida Maurício a entrar, Tia Maria não esconde a contrariedade com a visita:

- Desculpe eu vir sem avisar tio, mas eu ligo e não consigo falar com o senhor, a tia nada sabe me dizer, meu cheque voltou, se depositarem de novo minha conta vai ser encerrada, depois podem protestar o cheque, meu nome vai ficar “sujo”...

- Eu sei, sinto muito, Maurício...- descarado Tio José -...não me pagaram o dinheiro que me deviam, é uma reação em cadeia...

- Eu disse quando emprestei o cheque...

- Ora, Maurício...– interrompe Tia Maria -...é só uma conta! Logo nós resgataremos seu chequinho e o seu nome fica “limpinho” de novo, que exagero!

- Vocês poderiam vender o carro... - angustiado, tímido Maurício -...ou fazer um acordo com a financeira...

- E eu, Maurício? – surpresa Tia Maria - Como irei ao médico? De ônibus? Você sabe como sua tia tem a saúde em frangalhos, minhas costas, nem consigo andar direito!

- Tenha calma filho...– Tio José tenta anima-lo, ou melhor, enrola-lo -... logo vou receber o que me devem e resolverei tudo, agora temos que nos arrumar, hoje é o aniversário do seu primo, do nosso caçula, temos que correr, preparar tudo para a festa, você recebeu o convite Maurício? Não se esqueça de chegar cedo, contamos com você, o bufê é ótimo, você vai adorar, até mais...


- o –


Maurício está com roupas informais, de passeio, escuta música com um fone de ouvido, está descontraído na prateleira, ou melhor, na praça em frente sua casa. Em um banco próximo, está Amanda, inconformada, inconsolável, chora silenciosamente, mais de raiva que de dor, é o orgulho ferido:

- Cláudio, como pôde me trair? Tanta jura de amor, e agora, o que vou fazer? Já sei! Vou me vingar! Vou pagar na mesma moeda, preciso de alguém que me ajude, tenho que provar para aquele canalha que também posso despertar o interesse em outra pessoa, mas quem? 

Fica pensativa, intranquila, nervosa, passam-se minutos, parecem horas, não pode esperar mais, a vingança não pode esperar. Vem um rosto em seu pensamento, um sorriso, um nome:

- Maurício! É claro! Como não pensei nele antes? Ele é tão bonzinho! Maurício! Maurício!

Um salto, Maurício está ao seu lado no banco, tenta consola-la, demonstrar sua amizade, sua sensibilidade e todo sentimento que ele guarda há muito anos:

- Amanda, não chore! Tudo irá se resolver...

- O Cláudio é um falso, ele me traiu...

- Você deve estar enganada, ele te ama tanto!

- Eu também pensei que ele me amava, mas eu vi com meus próprios olhos, o que vou fazer da minha vida? Preciso de sua ajuda Maurício, me ajude...

- Tente perdoa-lo, procure esquecer, essas coisas acontecem...

- Nunca irei perdoá-lo, quem me garante que foi a primeira vez e que será a última?

- Pense bem, vocês já iam se casar...

- Oh, Meu Deus, estou perdida!

- Amanda, eu não posso ser um bom conselheiro, você sabe que gosto de você desde que éramos pequenos, nunca esqueci você e nunca irei esquecer, é melhor não opinar, não seria justo...

- Oh, Maurício, se eu também pudesse te amar, você sim seria o marido perfeito, honesto, carinhoso, bonzinho...

- Sempre vou querer o melhor para você, na época que você conheceu o Cláudio e me contou que estava apaixonada, ajudei para que ficassem juntos, a se conhecerem melhor, mesmo amando você, abri mão, renunciei, queria vê-la feliz, mesmo sofrendo, me senti bem por você...- ele suspira, respira fundo, está emocionado -...não sei o que você vai resolver, só posso te falar que sempre estarei aqui, te esperando, te amando...

- Como você é bom, Maurício, quem sabe, podemos tentar, o tempo é o melhor remédio...- abaixa os olhos, finge uma timidez que não possui, sua voz é sensual, sua respiração é sensual - ...você mudou, está mais forte, mais maduro, já te conheci como amigo, agora quero te conhecer como homem...

- É o que mais quero no mundo o que sempre sonhei...– está suado, treme emocionado, seus olhos estão marejados - ...quer sair comigo esta noite?

Ela chega bem perto dele, seus lábios estão próximos, seus corpos se encostam levemente, ele prende a respiração, ela se afasta, sorri maliciosa:

- Claro que quero, podemos ir a um barzinho e depois, bem a noite é uma criança e temos muito pra conversar, pra namorar, beijar, passo aqui às oito horas...

Ele ameaça abraça-la, ela se esquiva, sorri, joga-lhe um beijo e se afasta. Finalmente Maurício seria feliz, ele merece, sempre mereceu.


- o -


Impaciente, olha o relógio, caminha de um lado para outro, ansioso, feliz, seus olhos brilham, um sonho, ou quem sabe uma fria ilusão. Não, não podia pensar assim, tinha que acreditar, finalmente chegou a sua vez, seria feliz, faria Amanda feliz, amaria, seria amado, um sonho, sim, um sonho:

- Maurício!

Aquela voz as suas costas, era ela, sim era ela, reconheceria aquela voz em qualquer lugar, sentia a vibração de alegria, de emoção, ele já imagina, já tem toda a cena em sua mente, em uma fração de segundo, vai se voltar, vai sorrir e olha-la no fundo dos olhos, pega-la nos braços, sentir sua pele e beija-la, ele se volta, lá está ela, linda, sorridente, irradiante, lá estava ela, lá estava ele, juntos abraçados:

- Amanda...Cláudio...- sua voz é um fio.

- Maurício eu estou tão feliz! Ele veio me procurar, falei que ia sair com você, que ficaríamos juntos, nunca vi um homem chorar tanto, finalmente percebi que Cláudio realmente me ama, resolvi seguir seu conselho...

- Meu conselho? - estranho, já vira aquele filme, quando foi mesmo?

- Sim, eu o perdoei, estamos juntos novamente e agora para sempre!

Claro, era o filme da sua vida, sempre que desejava algo de verdade, chegava bem perto e perdia. E escapava das suas mãos.

- É verdade, amigão... – Cláudio aperta sua mão, entusiasmado - ...devemos tudo a você, cara, quase morro de ciúmes, mas ela me disse para não esquentar, que você é o cara mais bonzinho do mundo!

Ele, não sabe por que, naquele momento veio em sua mente aquela vez que foi convocado para a seleção de vôlei da cidade, no dia da estréia foi descer do ônibus, torceu o pé e foi cortado do time, ficou de fora. Sempre perdendo, sempre quando pensava que já tinha ganho.

Sorri sem a mínima vontade, queria gritar, esmurrar alguém, sorri, quer sumir, será se ele fechar os olhos não despertará em outro lugar, não, acha que não:

- Que é isso...

- Deixa de ser modesto, Maurício... – ela está exultante de alegria - ...e a surpresa maior não é essa!

- Surpresa?

Ele olha para os lados, agoniado, porque um raio não cai na sua cabeça e termina logo com aquilo, Cláudio fica passando a mão pelas costas de Amanda, beija seu rosto, seu pescoço.

- E que surpresa! – Cláudio mais exultante, mais feliz.

- Sim, vamos marcar o casamento e adivinhe quem é o padrinho?

Amanda está implacavelmente feliz.

- Padrinho?

Ele podia sair correndo, gritando que estava com dor de barriga.

- É meu chapa, padrinho... – Cláudio dá um “tapinha” em suas costas, íntimo, amigo - ...você será o nosso padrinho, que tal?

- Padrinho, que bom, é o “sonho” da minha vida, ser o padrinho de casamento da Amanda...

- Agora, até breve “compadre”, vamos sair e comemorar... – mais um “tapinha” nas costas.

- Sim e será uma longa comemoração, uma longa noite... – entusiasmada e excitada Amanda

Eles saem abraçados e futuramente felizes para sempre. Maurício olha para a prateleira, dá de ombros, o jeito é prosseguir.


- o -


Maurício em sua prateleira, em silêncio, livros abandonados, sem música, sem paz, olhar perdido, passa um filme, distraído ele assiste, como se hipnotizado, os atores, conhecidos, bem conhecidos:

- Parabéns, Estela! Sua promoção foi mais que merecida...

- Obrigada, João Pinho, estou tão feliz! Pena que tenha sido para ocupar o lugar do Maurício, incrível ele ter sido mandado embora, ele era tão bonzinho!

- Que adianta ser bonzinho, tem que ser um bom profissional, soube que ele atrasou o relatório dele...

- Culpa dele mesmo, vivia ajudando os outros, cada um que se virasse para fazer o seu, mas ele cismava de ajudar...

- Era só para se exibir, queria mostrar que era o tal, deixa pra lá, vamos comemorar, você que paga a conta é claro, afinal foi promovida...

- Nada disso, é meio a meio, pensa que sou boba como o Maurício? Comigo não tem moleza para ninguém...

- É isso aí “chefinha”, é isso aí...

O mesmo filme, nova cena, outros e não menos conhecidos atores:

- Nossa, José, nosso novo carro é lindo!

- É o seu bom gosto Maria, eu adorei a sua escolha!

- Dinheiro agora não é problema, graças ao seu novo emprego...

- Que tal ir até a casa do Maurício mostrar para ele?

- Não sei não, José, eu soube que ele está desempregado, vai pensar que estamos nadando em dinheiro, é capaz de acabar pedindo dinheiro emprestado, sabe como é parente...

- É mesmo, Maria, e aquele cheque, acha que devemos resgatá-lo? O nome dele ainda deve estar “sujo”...

- Para que? Já passamos aquele carro em frente mesmo! Daqui uns anos o cheque “caduca” e ele ficará com o nome “limpinho” de novo, pra que gastar dinheiro a toa? Se estiver sobrando, lembre-se que me prometeu aquela viagem de navio...

- Que tal ir agora mesmo à agência e ver os preços?

 - Ótima idéia, querido! Vamos...

Continua a passar o filme, o único telespectador está impassível, nostálgico, perdido, novos “velhos” atores, felizes, felizes para sempre:

- Estou tão feliz, Cláudio! Falta uma semana para o nosso casamento, vamos sair hoje? É o último final de semana que estaremos solteiros!

- Hoje? Bem...é que...hoje não vai dar...

- Por que, meu amor?

- O Gérson vai se mudar hoje, lembra que comentei com você? A turma toda vai estar lá para dar uma força...

- Não me lembro de você ter falado nada...

- Claro que falei! Com o corre-corre do casamento você deve ter esquecido

- E vai até tarde? – pergunta a ingênua moça

 - Você sabe como é mudança, tem hora para começar, mas não para acabar...- incrivelmente cínico -...depois a turma vai tomar uma cerveja...

- Está bem, meu amor, “eu” não quero atrapalhar o “seu” relacionamento com os “seus” amigos...

- Por que esse tom de voz? Ah, já sei, só pode ser por causa do “Mauricinho”...

- Não sei por que fui contar que ele gosta de mim desde pequena, ele sempre me respeitou...

- Que ele te respeitou eu sei, ainda mais depois do que me contaram ontem...

- O que foi?

- Me contaram que o “Mau-Mau” é “bichinha”, “boiolinha”...

- Não acredito!

- É o que todo mundo fala...

- Ele é tão bonzinho...

- Por isso mesmo, cara bonzinho demais pra mim é “bicha”...

- Pensei que ele fosse apaixonado por mim...

- Disfarce, Amanda, ainda bem que você concordou que não convidássemos mais ele para padrinho, eu soube que ele está desempregado, já pensou? Padrinho “bicha” e pobre, nem presente a gente ia ganhar!

Os dois riem, se abraçam, se beijam.

- Ah, Cláudio, só você mesmo!

Acaba o filme, Maurício salta da prateleira, joga tudo no chão, chuta o que vê pela frente:

- Bonzinho? ”Otário” isso sim! O que ganhei afinal por ajudar os outros? Qual a vantagem de ser bom? Em não desejar o mal para ninguém? Em ser educado, em ser útil? Nunca me custou nada ajudar, é algo natural, comum, mas para mim chega! Daqui para frente cada um que se vire para o seu lado, cada um que resolva seus problemas, não tenho nada com a vida dos outros, é cada um por si, como sempre foi e sempre será, não existe vantagem em ser bom, chega...chega...

Um homem para ao seu lado, roupa surrada, cabelos em desalinho, sujo, cansado, toca o ombro de Maurício, que ainda está nervoso, indignado com a vida, com as pessoas, consigo mesmo.

- O que quer? – rude, impaciente, frio - Fale logo, não tenho tempo...

- Sabe o que é, estou desempregado, meu filho é recém-nascido, preciso de 2 reais para comprar um litro de leite, será que o senhor não teria para me emprestar...

- Emprestar? E eu lhe conheço? Vai me pagar quando? Pensa que sou bobo? E estou desempregado...

- É que meu filho...

- O que tenho com isso? Eu não tenho filhos, o problema é seu, o filho é seu, vá trabalhar e me deixe em paz, se vire...

- Tudo bem moço, desculpe incomodar...

Vai se afastando devagar, Maurício respira fundo, ele mudou, não é mais o mesmo, dali para frente seria assim, tinha que ser assim.

O homem continua caminhando, ele agora não tinha mais nada com a vida dos outros, como os outros também não tinham nada com a dele.

- Senhor, espere!

Corre até onde está o homem, revira os bolsos, conta as moedas, tem três reais, põe na mão do homem.

- Obrigado moço, o senhor é muito bom!

- Não, não sou, e não quero e não devo ser...

- É sim, está no seu olhar, no seu jeito, cada um é o que é! Cada um está em um estágio da vida, o senhor já entende o que é ser bom, continue assim...

- Tudo na vida tem um início, um meio e um fim, eu já cheguei ao fim, não há nenhuma vantagem em ser bom...

- Claro que há, e só quem é bom que sabe qual essa vantagem, o senhor vai descobrir, vai ver...

O homem vai em direção da padaria, Maurício o acompanha com o olhar, fica prestando atenção. O balconista conhece o homem, faz festa quando ele chega ao balcão.

- E ai “cara”? Quanto tempo não aparece! Já sei, não precisa nem falar, um conhaque, duplo, com muito mel e limão...

Maurício balança a cabeça, desanimado, tudo sempre igual, nada muda, quando será que vai aprender? Vai voltando para a prateleira, antes, ouve a resposta do homem:

- De jeito nenhum! Parei de beber faz tempo, por isso nunca mais me viu aqui, parei de beber no dia que meu filho nasceu, quero um litro de leite, esse sim, no capricho!

- Leite? Tá bom, já que insiste...

Maurício tranquilamente volta para a prateleira, arruma seus livros, põe seu fone no ouvido, pega um travesseiro, repousa suavemente sua cabeça, como se estivesse deitando em uma nuvem, adormece com um sorriso nos lábios, sim, ele sabia qual era a vantagem de ser bom, ele sabia.



FIM

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