sábado, 13 de dezembro de 2014

“Respeito é bom e eu gosto!”





Armando olha para o fim da rua, ameaça descer do meio-fio para conseguir enxergar mais longe, as pernas tremem, procura se apoiar melhor na bengala, resolve por fim ficar no mesmo lugar, melhor não arriscar. Sua agitação, na verdade, não se justifica, é apenas o hábito, que faz com que a ansiedade e uma inexplicável urgência, o impulsionem a querer chegar sempre rápido ao seu destino.

Continua agitado e atribulado, mesmo já aposentado, se deixando levar pelo estresse e pela intolerância, não gosta de desperdiçar seu tempo, como está acontecendo naquele exato momento, ao esperar pelo transporte coletivo.

Distraído com sua própria impaciência, já enumerando todos os políticos responsáveis pelo “sofrimento” que estava passando naqueles quinze minutos de espera, quase não vê o ônibus se aproximando, gesticulando acintosamente sua bengala assim que o percebe, surpreendendo e assustando o motorista, que freia bruscamente, o que não evita que o coletivo ultrapasse por alguns metros o ponto de parada, gerando gritos e reclamações por parte dos passageiros que não esperavam a manobra, além de inúmeros impropérios resmungados por Armando, por ter que dar alguns passos a mais do que o normal.

Ao entrar no ônibus, obviamente, subindo degrau em degrau lentamente, não poupa o profissional de sua insatisfação:

- Por que não parou mais longe? É uma falta de respeito, o ponto é lá atrás, se fosse uma mulher bonita você subia até na calçada, mas como é para um velho de bengala...

O motorista ainda pensa em responder para esclarecer que a culpa era dele mesmo, já que havia dado o sinal em cima da hora, mas, balança a cabeça e desiste; experiente, já estava acostumado, sabia que não iria adiantar nada discutir, certo ou errado ele estaria sempre sem a razão, em vez disso, sua resposta é bem sutil, dá uma arrancada súbita, fazendo com que Armando se agarre ao primeiro passageiro à sua frente, esbarrando nas pessoas que estavam em pé, quase perdendo o equilíbrio, afinal, era horário que as pessoas costumam ir para o trabalho, para a escola, o coletivo está lotado. Ele até que podia sair de casa mais tarde, com menos movimento, mas sempre acorda e sai de casa no mesmo horário que quando ainda estava na ativa, é uma pessoa de hábitos, não tinha por que mudar.

Procura um lugar para sentar, vê uma oportunidade em um dos bancos onde idosos, gestantes, deficientes e mulheres com crianças no colo têm preferência, uma mulher grávida estava se levantando para descer, ele não perde tempo, empurrando todos à sua frente, senta-se, esparramando-se no banco.

Sentado ao seu lado, o que o deixa surpreso e indignado, aparentando uns dezoito anos, um jovem, de boné e óculos escuros, mascando um chiclete, com um fone no ouvido, está com a cabeça encostada no vidro da janela, o que impossibilita de saber se está dormindo ou apenas curtindo seu som e pensando na vida, está totalmente relaxado e tranquilo, e é exatamente nisso que está o problema.

Armando, que ao contrário, não está nada relaxado e muito menos tranquilo, suspira acintosamente, pigarreia alto, e olha para o jovem, sem dissimular a irritação, falando alto, em tom de censura:

 - Esse mundo não tem mais jeito, não é possível!

O jovem não esboça nenhuma reação, parece não ter ouvido, masca seu chiclete, curti sua música, distante:

- Rapaz! Ei você!

Armando fala alto, impaciente, cutucando o jovem com a bengala:

- Não está ouvindo eu te chamar rapaz?

O jovem vira o rosto para ele, displicente:

- Como?

- Estou falando com você!

- É, parece que vai chover...- volta a encostar a cabeça no vidro aumentando a irritação e a indignação de Armando, que volta a cutuca-lo com a bengala, desta vez com mais força, fazendo com que o jovem salte, assustado:

- Ai, isso dói!

- Eu estou “tentando” falar com você meu jovem!

- Calma ai Tio! – tira o fone do ouvido – pode falar “velho”...

- É sobre isso mesmo! Velho, ou melhor, idoso, como eu, como àquela senhora ali de pé, ou como aquele desenhozinho ali naquele colante onde está escrito “preferencial para idosos”, entendeu agora?

- Só isso? Claro que entendi, vai fundo...

Volta a colocar o fone no ouvido e ajeita-se mais confortavelmente no banco.

- Como vai fundo? - o Jovem não responde, fazendo com que o próprio Armando retire o fone de seu ouvido, aumentando o tom da voz - Como vai fundo?

- O senhor não quer fazer uma “presença” para a “tiazinha” que está de pé? Vai fundo, do maior apoio, eu penso assim, o amor não tem idade...

- Não é nada disso, seu “moleque”!

- “Moleque” não! Olha o respeito, “pô”!

- Respeito? É exatamente disso que estou falando, de respeito, da “sua” falta de respeito!

- Minha? Por quê? Estou aqui sossegado, o senhor fica me batendo sem parar e eu que não tenho respeito? Estou aqui quietinho, sentadinho...

- Por isso mesmo! Você deveria ficar “quietinho”, mas de “pezinho”, e não sentado enquanto várias senhoras estão de pé...

- É o que mais admiro nas pessoas mais velhas, esta disposição, eu não aguentaria ficar de pé esse tempo todo, que bonito!

- Você é muito “cara-de-pau”! Este assento é preferencial para idosos, gestantes e deficientes, ”grávido” você não está, e deficiente, só se for mental, o que não duvido...

- “Pô velho”, ”pega leve”, o senhor mesmo está dizendo, o lugar é “preferencial” e não “exclusivo”, o que quer dizer que de preferência é para a velharia, mas não obrigatoriamente...

- Como não é? Vamos logo, seja cavalheiro e ceda seu lugar!

- Eu digo o mesmo para o senhor, como “eu” que sou o mal-educado, mostre “sua” educação e dê o lugar para a sua namorada...

- Não é justo! Eu também sou idoso e ela não é minha namorada, seu atrevido! Você que é o jovem, você é que tem que levantar...

- Pode ser, mas, se for verdade o que dizem por ai que já tivemos outras vidas, meu espírito pode ser mais velho que o seu...

- Então deixe o seu velho espírito sentado e o corpo que fique de pé!

O Jovem sorri e dá uma tapinha nas costas de Armando:

- “Aí, velho”! Gostei de ver, não é fraco não, mas diga lá, qual o nome do senhor?

- Armando, por que quer saber?
-
 É que desde pequeno minha mamãe me ensinou para não falar com estranhos, prazer, meu nome é Maurício...

- E sua mamãe também não lhe ensinou a respeitar os mais velhos? A ceder o lugar para eles?

- Pode até ser, mas era muita coisa, não deu para decorar tudo, quantos anos o senhor tem?

- Sessenta e um anos e bem vividos, só essa perna que me dói muito, é uma dor crônica...

- “Uau velho”, “bateu na trave”! Quase que não tem direito a “preferência”, o senhor não está mentindo, não é? Vai ver que é “gato”, igual aos caras que enganam a idade nos times de futebol...

- Eu não minto seu “moleque”! - indignado – saiba que sempre mostro o documento quando entro no ônibus!

- Pra que?

- Para não pagar é claro!

- Espera ai, quer dizer, que não paga a passagem? Então o “tio” além de passear de graça, ainda quer ir sentado? É muita moleza...

- Deixe de ser impertinente, garoto! Nós fizemos por merecer, muito demos de nossas vidas!

- Para quem? Nem o senhor e nem sua “namorada” ali me deram nada, pelo contrário, ainda querem tomar o meu lugar...

- Dei para o país, seu engraçadinho, para o país!

- “Xiii”...então não deu muito, do jeito que o país está, violência, saúde precária, educação bagunçada...

- Não por culpa nossa! São os jovens de hoje que deixaram o país assim...

- “Péra lá” Armandinho! Posso chamar o “tio” de Armandinho né? Assim nós ficamos mais chegados, como eu ia dizendo, pelo que sei, a maioria dos “chefões” do nosso país é ”coroa”, já deviam estar até em um museu, mas não querem largar o “osso” de jeito nenhum, o que prova que nós, pobres jovens, não temos culpa nenhuma, sabe o quanto temos que “ralar” para arranjar o primeiro emprego? Escola pública é a maior bagunça e tudo isso, pode acreditar “velho”, culpa de vocês...

- Nosso país sempre teve seus problemas, só que antes se tinha respeito, se respeitava os mais velhos, as autoridades, não tínhamos essa violência, a maioria gerada por essa “molecada” que está por ai, não querendo nada com nada...

- Que nada, Armandinho! Isso já existe há muito tempo, só que antes vocês só tinham os jornais e os radinhos de pilha, telefone e televisão era coisa de milionário, cada notícia demorava um século para chegar e isso quando chegava, enquanto dez pessoas eram assassinadas, só se tinha notícia de uma, agora é tudo on-line, peidou na China, minutos depois o cheiro já chega aqui no Brasil...

- Talvez, eu disse, talvez, você tenha um pouco de razão, Maurício...

- Pode me chamar de “Mau-Mau”, é como a “galera” me conhece...

- Então, “Mau-Mau”, pode até ser, só que antes a violência era bem menor, todos respeitavam a polícia, só que agora...

- Só que antigamente tinham menos pobres, menos pessoas excluídas, menos “necessidades”, mais empregos, o mundo ainda estava se industrializando, se modernizando...

- Tinha-se mais respeito, isso sim! Você, por exemplo, até agora está ai, “esparramado”, enquanto minha namorada, quer dizer, aquela senhora continua de pé, no meu tempo levantávamos na hora e cedíamos o lugar...

- Não acredito...

- Como?

- É, “Armandinho”, não acredito que no seu tempo vocês eram assim, tão educados...

- Eu sou um cavalheiro, vou lhe mostrar...- levanta-se atrapalhado pelos sacolejos do coletivo, 
Maurício dá de ombros e volta a colocar o fone no ouvido e encostar a cabeça na janela -  senhora, por favor, ”ei” espera ai...- senta-se novamente, dando outra bengalada no jovem -  ”Ei”, você!

- Ai...essa doeu!

- Sua consciência é que devia estar doendo, para de me enrolar, vamos logo, levante daí e dê o seu lugar, mostre de uma vez que os jovens de hoje ainda tem um pouco de respeito...

- Lá vem o senhor de novo com esse preconceito...

- Preconceito? Que preconceito?

- É “velho”, não existe essa de jovem ou coroa, existem tanto os jovens que não tem respeito...

- Como é o seu caso...

- Como também existem idosos...

- O que não é o meu caso...

- Tem certeza?

- Claro que sim!

- “Ah” é? E quem foi que atrapalhou minha meditação me batendo com uma bengala, me intimidando, sem mesmo perguntar por que estou sentado no seu lugar “preferencial”? Sem querer saber se eu estou com algum problema ou não? Poderia ter falado educadamente, com “respeito” e se eu estava distraído e não percebi a sua “placa”? E se eu estou passando mal, tonto de fome, por não ter dinheiro para tomar um café da manhã decente?

Armando abaixa a cabeça, envergonhado:

-Desculpe, eu nem tinha pensado nisso, você tem razão! Você não está passando bem? Não comeu nada até agora? Vamos descer em algum lugar, damos um jeito de você tomar um lanche...

- Não, obrigado, Armandinho, tomei um café da “hora” que a mamãe me preparou, dois mistos, suco de laranja, mamão, eu estou “cheinho” fica pra próxima...

- Seu “moleque” mentiroso!

- A questão não é essa, não estou, mas poderia estar...

Armando começa a tossir, tem dificuldades para respirar, levanta-se apoiado no banco, Maurício se assusta:

- O que foi “Armandinho”? Fala comigo “velho”...

Maurício também se levanta, Armando tenta sentar em seu lugar, mas tromba com ele, uma freada brusca do ônibus e os dois caem sentados, juntos, nos mesmos lugares onde estavam.

- Que “sujeira”...- agora é Maurício que está indignado -...isso é trapaça! Nunca poderia esperar isso de uma pessoa idosa...

- Quem é o preconceituoso agora? Você acha que já nasci velho? Já fui “moleque” como você...

- “Ta” vendo? E ainda pega no meu pé!

- Só que nunca deixaríamos uma mulher, velha ou jovem, de pé, e naquela época, pelo respeito que tínhamos, nem mesmo precisavam existir lugares preferenciais...

- Mas pulavam do bonde sem pagar...

- Bem, eu...

- Depois quando virou “buzão”, desciam correndo pela porta de trás, também sem pagar...

- As vezes nós...

- E acabaram se acostumando de tal forma, que agora, depois de “velhos”, querem continuar andar de ônibus sem pagar e ainda por cima, querem ir sentadinhos, ah tio, faça-me o favor!

- Você está distorcendo tudo, agora é lei, mesmo vocês não tendo respeito, nós temos direito mesmo assim...

- E se eu fosse idoso? Sua namorada teria que ficar de pé do mesmo jeito ou você ia dar o lugar para ela?

- Se nós dois fossemos idosos, outras pessoas poderiam lhe ceder o lugar, o problema é exatamente esse, hoje em dia é cada um por si, ninguém se preocupa com o próximo...

- “Armandinho” você não pode “chiar”, tem “cadeira cativa”, se tem mais passageiros “preferenciais” que vagas disponíveis, o pessoal não tem culpa...

- São poucos lugares preferenciais, é um absurdo!

- Também acho, deveria ter um ônibus exclusivo para a “velharia”...

- Está vendo? “Velharia”! Isso é jeito de falar? Espero que um dia você chegue à minha idade...

- E de preferência com um “carrão” do ano, assim não precisarei ficar perturbando o sossego dos outros nos transportes coletivos...

- Eu tenho carro, só que estou indo jogar com os amigos e...

- Já sei, é bem melhor ir de graça, pra que gastar gasolina? Ter que arrumar vaga para estacionar? Dar uma “gorja” pro “flanelinha”, só que enquanto o senhor vai jogar, se divertir, sua “namorada” está ali, de pé, que vergonha!

- Você que é um sem-vergonha descarado! “Moleque” atrevido!

- Calma, “Armandinho”, olha o coração! Sabe, é sempre assim, sempre achamos que na nossa época as coisas são melhores, que hoje as pessoas não sabem aproveitar a vida, é tudo igual, a minha geração daqui alguns anos estará recitando essa mesma “ladainha”...

- No meu tempo era melhor mesmo...

- Só que as coisas mudam Armandinho, as prioridades são outras...

- O certo será sempre certo e o errado sempre errado, principalmente na moral e nos bons costumes...

- Eu não acho...

- Pois, eu sim! Veja só as meninas de hoje como se vestem, indecentes, e ainda são crianças, jovens...

- Isso é questão de moda...

- Moda não, antigamente quando eu era jovem e ia aos lugares de meretrício...

- Traduzindo, ”zona”...

- Isso mesmo, lá as mulheres se vestiam para provocar os homens, se vestiam de forma diferente, com tudo de fora...

- Saltava aos olhos, não é “Armandinho”?

- Só que de longe você sabia quem era mulher da vida e quem era moça de família, e hoje?

- E hoje?

- Ora, basta você ir na “zona”...

- Eu nunca fui, mas pelo jeito o “tio” ainda deve ir muito, lá o senhor também tem lugar preferencial?

- Eu não vou mais lá há muito tempo, seu abusado! Eu vejo quando passo por lá de ônibus, é só comparar, hoje se vestem todas iguais, não dá mais para saber quem é quem, é tudo de fora, para quem quiser ver...

- O senhor está exagerando...

- Exagerando? Você não vê?

- Não presto muita atenção nessas coisas...

- Não presta atenção nas mulheres? – surpreso – O que há com você, meu filho? Você é “bicha”?

- Tá louco “velho”? Claro que não, só não consigo prestar atenção nestes detalhes...

- “Detalhes”? – repete irônico – deixa pra lá e filhos então? Essas meninas engravidam como se estivessem pegando um resfriado, aos treze, quatorze anos e olha que engravidar hoje em dia é o menor dos males, ainda tem a AIDS...

- Neste ponto eu concordo, mas não vai querer me convencer que na sua época era diferente...

- Lógico que era diferente! As mulheres se resguardavam para o casamento, até mesmo alguns homens se casavam virgens!

- Armadinho...Armandinho, a quem o senhor quer enganar?

- Como assim?

- É o mesmo caso da violência, essas coisas sempre existiram só que era tudo “enrustido”, ”fala sério”! Quantas crianças nasceram de “sete meses”, no seu tempo?

- Bem, tinham alguns partos prematuros, a medicina não era tão avançada...

- Mas as mulheres eram bem “avançadinhas”, era parto prematuro que não acabava mais, uma verdadeira epidemia de bebês de sete meses, tudo “papo furado”, como dizia minha avó, ”comeram a sobremesa antes do jantar”...

- Era diferente...- Armando suspira inconformado -...era muito diferente...

- Ta, não fica tristinho Armandinho, concordo que algumas coisas passaram dos limites, mas a culpa não é dos jovens e sim desse poder oculto que faz a gente dançar de acordo com a música que eles escolhem tocar...

- Poder oculto? Isso é coisa de Jânio Quadros...

- O poder da grana! Hoje em dia, para o senhor ver, inventaram a “pré-adolescência” e sabe por quê? Eles não querem esperar, eles querem transformar as crianças em consumidores o mais rápido possível, por isso eles enfiam esse “lixo“ na televisão, em qualquer horário, novela que era das oito eles reprisam na parte da tarde, ”malhações” e tantas outras porcarias mais, fora a internet, que a maioria dos pais não se “liga”, deixando seus filhos navegarem em cada site...

- Estou até impressionado com sua inteligência menino, você acha que é essa intenção? Só para as crianças gastarem mais cedo? Isso seria um crime!

- Ora, posso ser “mal-educado”, mas não sou burro, ”ta” na “cara” se crescermos mais cedo, teremos exigências mais cedo, roupas da moda, celulares, bijuterias, isso vai longe...

- No fundo você quer é mudar de assunto, as coisas são como tem que ser, as pessoas que estão erradas, nós também tínhamos televisão, jornais e nunca nos deixamos nos influenciar...

Enquanto eles conversam, entra no ônibus um indivíduo estranho, olhando desconfiado para todos, mulheres seguram suas bolsas com mais força junto ao corpo, ele começa a estudar o ambiente, olha para pulsos atrás de relógios, pescoços atrás de colares, bolsos atrás de carteiras. O coletivo ainda está cheio, há pouco espaço para se movimentar, corpos se esbarram e se empurram. O suspeito chega mais próximo do banco onde estão Armando e Maurício, que distraídos com a discussão que travam, não percebem o perigo que os ronda.

- É o que estou dizendo meu jovem, isso tudo é fantasia de sua cabeça...

O homem chega bem perto e levanta rapidamente a camisa mostrando a cintura, eles finalmente percebem a sua presença e também a presença de um revolver.

- Quietos! Estou armado, é um assalto, não se mexam!

- Mexer para onde? Como? – Armando se queixa - O ônibus está lotado!

- Vamos senhor, da pra passar a grana logo, por favor? Primeiro os mais velhos...

- Está vendo? – olha triunfante para Maurício - Isso que é educação, “primeiro os mais velhos”, que lisura, deveria seguir o exemplo...

- Está falando do que? – o ladrão olha confuso e desconfiado

- Não concordo! – Maurício protesta - Veja bem, “seu” ladrão, ele já não paga passagem, tem cadeira cativa e ainda vai ser o primeiro a ser assaltado? É por isso que nós, os jovens, somos rebeldes, não há lugar para nós neste país...

- Não seja por isso! –o educado meliante – passa logo a “grana”, meu jovem, e o relógio também...

- De jeito nenhum! – o indignado Armando - Tenho mais de sessenta anos...- mostra a identidade para o ladrão -...tenho meus direitos garantidos por lei, temos preferência nos ônibus, nos bancos, nos cinemas, nos teatros...

- Hospitais, asilos, necrotérios...- completa Maurício

- Que é isso rapaz! – o ladrão chama a sua atenção - Que falta de respeito, ele tem idade para ser seu avô!

- Mas não é...

- Sorte sua, se eu fosse o seu avô já teria aprendido há muito tempo como tratar os mais velhos...

- Meu pai mesmo...- o saudosista ladrão -...quando estava sóbrio, sempre nos obrigava a respeitar os mais velhos, a ajuda-los na rua, dar lugar nas filas...

- Exatamente o que eu estou dizendo a mais de meia hora a este “moleque”...

- Claro...- Maurício sorri compreensivo -...e seu “sóbrio” pai também ensinou a rouba-los, não é mesmo?

- Esse é o meu trabalho, é diferente...-olha para Armando friamente -... o senhor não concorda?

- Bem, isto é, veja bem...

- Essa foi boa, vamos lá, Armandinho, concorda ou não?

- Cada caso é um caso...- Armando tenta ainda argumentar

- Eu também quando ficar velho...- o sonhador ladrão -...quero ser bem tratado e respeitado...

- Continue desse jeito que com certeza vão te tratar muito bem...- o irônico Maurício -...comida, roupa lavada, televisão...

- E uma “velhinha” do meu lado para um “cafuné”...

- Aí já é mais difícil, ainda não existem presídios para casais...

- Escute aqui seu “moleque”...- o indignado ladrão

- Não ligue para ele...- o solidário Armando -...os jovens são assim mesmo, pensam que sabem tudo, que nós não prestamos para mais nada...

- Eu já não acho...- o orgulhoso ladrão -...os mais velhos devem ser nossos exemplos, temos que admira-los e aprender com eles...

- Até me emociono ao ouvir isso...- o emocionado Armando

- Escadinha, Fernandinho Beira-Mar e o mais famoso de todos os tempos, Al Capone, meu herói...

- Agora quem ficou emocionado fui eu...- Maurício cutuca o Idoso -...não da vontade de chorar?

- Então, meus amigos? – o equilibrado ladrão - Já decidiram quem vai ser o primeiro?

- O senhor me convenceu...- o esperto Maurício -...primeiro os mais velhos...

- Que é isso! – o arrependido Armando - Para depois falarem que não damos chance para a juventude de nosso país? Faço questão, primeiro “Mau-Mau”...

 - “Mau-Mau”?

- É o meu apelido...

 - Legal! – o animado ladrão - O meu é “Tiro-Certo”, nunca errei nenhum...

- Ai...ai...- Armando em pânico

- E...e...foram muitos? - o gaguejante jovem

- Ah, não muitos, comecei minha carreira tarde, já tinha quinze anos, foram só cinco...

- Só? – o apavorado jovem

- Benza Deus! – o mais apavorado idoso.

- Calma, senhor...

- O nome dele é Armando...

- Armando? – eufórico Ladrão - Era o nome do meu pai!

- “Ufa”, que bom...- Armando suspira aliviado

- Ele me dava cada surra, tenho as marcas até hoje, foi o primeiro tiro certo...

- É, sempre digo, nome não quer dizer nada...- quase enfartado Armando

- Como eu ia dizendo “seu” Armando, fique calmo, até hoje só “apaguei” os folgados por dois motivos, sou um ladrão de princípios éticos, o primeiro porque eles reagiram...

- Ah, eu nunca faria isso...- esperançado Armando

- E o segundo? – o curioso Maurício

- Os folgados estavam “duros”, sem um centavo, é a maior falta de respeito com a gente!

- Aiii...

- “Fica frio”, “Armandinho” – o jovem tenta anima-lo -...mostra sua “carteirinha”, idoso não paga...

- Como não? Posso até cobrar meia, mas alguma coisa tem que “rolar”, vamos logo, tenho outros lugares para trabalhar, e ai “coroa”, não enrola, passa logo a grana!

- “Coroa” – o contrariado Maurício - E o respeito que o seu “sóbrio” pai te ensinou? Isso lá são modos de falar?

- Tem razão, desculpe “seu” Armando, por favor, me forneça o seu dinheiro ou serei obrigado a matá-lo, com todo respeito...

Um homem, um pouco afastado de onde estavam, percebe o assalto em andamento, também tem um revolver na cintura, vai passando por entre os outros passageiros, tentando se aproximar sem chamar atenção.

- É que me pegou desprevenido...- o suado em bicas Armando -...só recebo a aposentadoria segunda-feira...

- Desculpe, mas não posso abrir exceções...- o incorruptível Ladrão -...tenho um nome a zelar, vamos lá “seu” Armando, só um realzinho...

- Não...não tenho...- o apavorado idoso

- Cinquenta centavos? – o benévolo assassino

- Estou indo jogar baralho, sempre é a vez de um de nós pagar o aperitivo ou um café...

- “Seu” Armando! Eu entendi mal ou o senhor não leva dinheiro só para poder filar dos outros? – o espantado Mauricio - Que vergonha!

- Eu...eu...

- Olha “seu”Armando, sinto muito, mas...

Tiro Certo é agarrado por trás, o homem armado o pega de surpresa, o desarmando e algemando:

- Quieto! Polícia! Te “manjei” de longe seu malandro...

- Calma, doutor, por favor, eu me entrego!

- Viu só, “Armandinho”! “doutor”, ”por favor”, depois o senhor diz que não se respeita mais a polícia...

- Quem é que não me respeita? É você velho? - o desrespeitoso policial

- Velho? – protesta Tiro Certo - Poxa doutor, mais respeito com “seu” Armando!

- Cala a boca malandro!

Dá uma tapa na cabeça do Tiro Certo

- Ai, olha os direitos humanos! - reclama o injustiçado ladrão

- Está vendo, “Armandinho”? - Maurício comenta - É por isso que ninguém respeita mais a polícia...

- Antigamente respeitavam...

- E ai daquele que não respeitasse...- o saudoso policial

- Respeitavam não, tinham medo, era diferente... – esclarece o politizado Maurício -...na época da ditadura a polícia fazia e desfazia e ficava na “boa”...

- Bons tempos! – também saudoso policial - Tinha até esquadrão da morte..

- É verdade, bons tempos...- o irônico jovem -...matavam ou prendiam por qualquer coisa, sem provas, culpado ou inocente, é por isso...

- Por isso o que? – o curioso Tiro Certo

- Que se tinha respeito! – o convicto Armando

- Que vocês se “cagavam” de medo da gente! – o também convicto policial

- É por isso que quando acabou a ditadura e as pessoas puderam começar a manifestar suas opiniões, que a “represa” transbordou, que o conceito de liberdade foi levado a extremos, que o “respeito” acabou, isso porque na verdade ele nunca existiu, o que existia de fato era o medo e isso prova que respeito não se impõe, se conquista...- completa o plenamente convicto jovem

- Queria ter um filho assim...- Tiro Certo enxuga uma furtiva lágrima

- É incrível! – o surpreso Armando - Esse “moleque” consegue enrolar todo mundo...

- O papo está bom, só que está na hora de colocar este espertinho na “cana”, motorista, pare neste ponto ai próximo ao distrito, temos que arranjar um novo lar para esse “sem-grade", vamos malandro! - o policial vai empurrando Tiro Certo

- Tchau, “Mau-Mau”, “seu” Armando, fiquem com Deus, desculpe qualquer coisa...

Os dois descem do ônibus por entre os assustados passageiros, Armando sorri pensativo:

- É “moleque” se desse para juntar a sua inteligência com a educação do Tiro Certo o mundo seria perfeito, este mundo está “virado” mesmo, essa violência, não dá nem mais para sair na rua...

- Uma hora a coisa muda Armandinho, só o bem é eterno, o mal, mais cedo ou mais tarde, “pia” fora...

- Bem com essa confusão toda você conseguiu o que queria, ficou ai “esparramado” no meu banco preferencial o tempo todo, vai descer onde?

- No ponto final mesmo...

- Eu também, estamos quase chegando...

- Sua “namorada” resistiu heroicamente ficar de pé?

- Ela acabou de descer, e não era minha namorada, o que é uma pena, até que ela ainda dava um bom caldo...

Os dois riem, Maurício lamenta:

- Que pena, logo agora que eu ia dar meu lugar para ela...

- Muito engraçado, agora nem ia precisar, está cheio de lugar para sentar, acho que a maioria desceu antes por causa do ladrão...

- “Tiro-Certo”...

- Apesar de tudo parecia ser um bom sujeito, educado...

- É, talvez em outras situações, com um pai totalmente sóbrio, ele teria seguido outro caminho, vai saber...

- Engraçado, você é um garoto inteligente, às vezes até “parece” educado, não entendo porque a falta de consideração com os mais velhos, a falta de respeito...

- Eu tenho respeito e não só pela “velharia”...– sorri brincalhão antes que Armando reclame -...respeito a todas as pessoas, é assim que tem que ser...

- Só que não parece...

- Respeito “Armandinho” não é só ceder o lugar aos mais velhos...

- Já é um bom começo...

- Sim, sem dúvida é importante termos lugares reservados aos idosos, aos deficientes, garantir o acesso, a locomoção...

- Agora que estamos chegando que você vem com esse discurso...

- Acho que é preciso, principalmente, acabar com essas filas nos balcões da previdência, garantir um atendimento digno na saúde, auxiliar na inclusão efetiva na sociedade, para serem mais participativos, mais atuantes, a experiência de vida de vocês, dos que lutam para superar deficiências, é muito importante para auxiliar na nossa formação, para nossa juventude...

- A maioria das pessoas olha para nós já com impaciência, pensando que vão ter trabalho redobrado, querem se livrar logo da gente...

- E isso acontece até dentro da própria família, achando que os mais velhos são incapazes, que não sabem mais tomar decisões, são tratados como crianças, como inúteis e isso não ocorre só com eles, com os deficientes também, confundem deficiência com inutilidade, poucos são os que os estimulam a tomar suas próprias decisões e procurar viverem de forma normal, participativa...

- É verdade, o que mais sinto falta quando estou com meus filhos e netos é conversar, em poder dar minha opinião, participar das decisões, sinto-me meio que excluído...

- É, sei como é se sentir a parte, isolado...

- Sabe? Como?

- Deixa pra lá, falta muito ainda pra gente chegar?

- Já chegamos, não está vendo? Também com esses óculos escuros...

Armando se levanta, Maurício o acompanha.

- Posso até dizer que apesar de tudo foi um prazer te conhecer “Mau-Mau”...

- É isso ai “Armadinho”, também gostei de te conhecer, o senhor e a sua bengala...

- Da próxima vez já sabe, é só não sentar nos lugares preferenciais, vê se deixa de ser folgado e de fingir que não enxerga aquele enorme colante que bem ali...- aponta para o colante que identifica os assentos preferenciais -...jovens como você ainda me fazem acreditar que nosso mundo ainda não está totalmente perdido...

- Olha o preconceito, Armandinho! Idade não tem nada com isso!

- Pode ser, talvez, bem como vocês dizem...- estende a mão para Maurício -...toca aqui “velho”! – Maurício continua impassível – Vamos lá “moleque”, teve uma recaída ou não quer apertar a mão de um pobre idoso?

- Opa “tio” desculpe...- estende sua mão longe da de Armando, que olha-o sem entender, apertando a mão de Maurício, que lhe dá um forte abraço -...fica com Deus, Armandinho, a gente se cruza por ai...

- Está tudo bem com você?

- Claro “velho”, a vida é só alegria, vou nessa...

Ajeita o fone no ouvido, tira da mochila uma bengala dobrável e vai tateando até chegar na porta do ônibus, desce os degraus e vai calmamente caminhando pela plataforma, desviando dos obstáculos com uma facilidade incrível, até sumir por entre a multidão. Boquiaberto, Armando o acompanha o tempo todo com o olhar:

- Mau-Mau é...é...você...é...

Está sozinho no ônibus, perplexo, até que uma voz em alto brado o faz despertar:

- E ai, “coroa”! Vai descer ou continuar passeando de graça o dia todo? Não tem mais o que fazer?

- Já vou seu mal-criado, seu trabalho é dirigir esse ônibus e só, bem caladinho, isso é jeito de falar com os mais velhos? Fique sabendo que respeito é bom e eu gosto!


FIM

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