Hoje, mais uma vez, daremos a palavra ao Codificador da Doutrina Espírita, Allan Kardec, reproduzindo mais um texto inserido no Livro "Obras Póstumas", uma coletânea de publicações, na maioria delas inéditas, encontradas entre o vasto material de estudo que ele deixou, lembrando que este foi escrito por volta de 1860, e o quanto ele se aproxima do atual momento que hoje estamos vivenciando.
As Aristocracias
Aristocracia vem do grego aristos, o melhor, e Kratus, poder:
a aristocracia, em sua acepção literária, significa, pois: Poder
dos melhores.
Convir-se-á que o sentido primitivo foi, por
vezes, singularmente desviado; mas vejamos que influência o
Espiritismo pode exercer sobre a sua aplicação. Para isso
tomemos as coisas no ponto de partida e sigamo-las através
das idades, para delas deduzir o que ocorrerá mais tarde.
Em nenhum tempo, nem em nenhum povo, os homens em
sociedade puderam abster-se de chefes; são encontrados
entre os povos mais selvagens. Isso se prende a que, em
razão da diversidade das aptidões e dos caracteres inerentes à espécie humana, há por toda a parte homens incapazes que é preciso dirigir, fracos que é necessário proteger, paixões
que é preciso comprimir; daí a necessidade de uma
autoridade.
Sabe-se que, nas sociedades primitivas, essa
autoridade foi deferida aos chefes de família, aos anciãos, aos
velhos, em uma palavra, aos patriarcas; essa foi a primeira de
todas as aristocracias.
Tornando-se as sociedades mais numerosas, a autoridade
patriarcal ficou impossibilitada em certas circunstâncias. As
querelas entre populações vizinhas ocasionaram os combates;
foi preciso para dirigi-las não de velhos, mas de homens
fortes, vigorosos e inteligentes; daí os chefes militares.
Vitoriosos esses chefes, se lhes conferia a autoridade,
esperando encontrar, em sua bravura, uma garantia contra os
ataques dos inimigos; muitos, abusando de sua posição, dela
se apoderaram eles mesmos; depois, os vencedores se
impuseram aos vencidos, ou os reduziram à servidão; daí a
autoridade da força bruta, que foi a segunda aristocracia.
Os fortes, com seus bens, transmitiram, muito naturalmente,
sua autoridade aos seus filhos, e os fracos sob compressão,
não ousando nada dizer, se habituaram, pouco a pouco, a
considerar estes como os herdeiros dos direitos conquistados
pelos seus pais, e como seus superiores; daí a divisão da
sociedade em duas classes: os superiores e os inferiores,
aqueles que mandam e aqueles que obedecem; daí, por
consequência, a aristocracia de nascimento, que se torna tão
poderosa e tão preponderante quanto a da força, porque ela
não tinha força por si mesma, como nos primeiros tempos em
que era preciso pagar por sua pessoa, ela dispunha de uma
força mercenária.
Tendo todo o poder, se dava, naturalmente,
privilégios.
Para a conservação desses privilégios, era preciso lhes dar o
prestígio da legalidade, e ela fez as leis em seu proveito, o
que lhe era fácil, uma vez que só ela as fazia. Isso não era
sempre suficiente; deu-se o prestígio do direito divino, para
torná-las respeitáveis e invioláveis. Para assegurar o respeito
da parte da classe submissa que se tornava mais numerosa, e
mais difícil de contentar, mesmo pela força, não havia senão
um meio, impedi-la de ver claro, quer dizer, mantê-la na
ignorância.
Se a classe superior tivesse podido nutrir a classe inferior sem
nada fazer, a teria facilmente dominado por muito tempo
ainda; mas como esta era obrigada a trabalhar para viver, e
trabalhar tanto mais quanto era oprimida, disso resultou que
a necessidade de encontrar, sem cessar, novos recursos, de
lutar contra uma concorrência invasora, de procurar novos
mercados para os produtos, desenvolveu a sua inteligência, e
ela se esclareceu pelas mesmas causas das quais se serviu
para sujeitá-la.
Não se vê aí o dedo da Providência?
A classe submissa, portanto, viu claro; viu a pouca
consistência do prestigio que se lhe opunha e, sentindo-se
forte pelo número, aboliu os privilégios e proclamou a
igualdade diante da lei. Esse princípio marcou, em certos povos, o fim do reino da aristocracia de nascimento, que não é mais do que nominal e honorífica, uma vez que ela não
confere mais direitos legais.
Então, se levantou um novo poder, o do dinheiro, porque com
dinheiro se dispõe de homens e de coisas. Era um sol diante
do qual se inclinava, como outrora se inclinava diante de um
brasão, e mais baixo ainda. O que não se concedia mais ao
título, se concedia à fortuna, e a fortuna teve os seus
privilégios iguais. Mas, então, percebeu-se que, se para fazer
fortuna é preciso uma dose de inteligência, não era preciso
tanto para herdá-la, e que os filhos são, frequentemente,
mais hábeis para comer do que para ganhar, que os próprios
meios de se enriquecer nem sempre são irrepreensíveis; disso
resultou que o dinheiro perdeu, pouco a pouco, seu prestígio
moral, e que essa força tende a se substituir por um outro
poder, uma outra aristocracia mais justa: a da inteligência,
diante da qual todos podem se inclinar sem se aviltar, porque
ela pertence ao pobre como ao rico.
Será essa a última? Ela é a alta expressão da Humanidade
civilizada?
Não.
A inteligência nem sempre é uma garantia de moralidade, e o
homem mais inteligente pode fazer um emprego muito mau
de suas faculdades. Por outro lado, só a moralidade pode, a
miúdo, ser incapaz. A união dessas duas faculdades,
inteligência e moralidade, é, pois, necessária para criar uma
preponderância legitima, e à qual a massa se submeterá cegamente, porque lhe inspirará toda a confiança por suas
luzes e por sua justiça. Será a última aristocracia, a que será a consequência, ou antes, o sinal do advento do reino do bem
sobre a Terra. Chegará muito naturalmente pela força das
coisas; quando os homens dessa categoria forem bastante
numerosos, para formarem uma maioria imponente, será a
eles que a massa confiará os seus interesses.
Como vimos, todas as aristocracias têm a sua razão de ser;
nascem do estado da Humanidade; ocorrerá o mesmo com
aquela que se tornar uma necessidade; todas fizeram, ou
farão, o seu tempo segundo o país, porque nenhuma teve por
base o princípio moral; só esse princípio pode constituir uma
supremacia durável, porque será animado dos sentimentos de
justiça e de caridade; supremacia que chamaremos:
aristocracia intelecto-moral.
Um tal estado de coisas é possível com o egoísmo, o orgulho,
a cupidez que reinam soberanos sobre a Terra? A isso
responderemos com firmeza: sim, não somente é possível,
mas chegará, porque é inevitável.
Hoje, a inteligência domina; é soberana, ninguém poderia
contestá-lo; e isso é tão verdadeiro que vedes o homem do
povo chegar aos primeiros cargos.
Essa aristocracia não é mais justa, mais lógica, mais racional do que a da força brutal,
de nascimento ou do dinheiro? Por que, pois, seria impossível
juntar-lhe a moralidade?
Porque, dizem os pessimistas, o
mal domina sobre a Terra. Está dito que o bem não o
dominará jamais? Os costumes e, por consequência, as
instituições sociais, não valem cem vezes mais hoje do que na
Idade Média? Cada século não foi marcado por um progresso?
Por que, pois, a Humanidade se deteria quando tem ainda
tanto a fazer? Os homens, por um instinto natural, procuram
seu bem-estar; se não o encontram completo no reino da
inteligência, procurá-lo-ão alhures; e onde poderão encontrá-
lo se não for no reino da moralidade? Para isso, é preciso que
a moralidade domine numericamente.
Há muito a fazer, é incontestável, mas, ainda uma vez, haveria tola presunção em dizer que a Humanidade chegou ao seu apogeu, quando é vista a marchar, sem cessar, no caminho do progresso.
Dizemos primeiro que os bons, sobre a Terra, não são
inteiramente tão raros quanto se crê; os maus são numerosos,
isto infelizmente é verdade; mas o que os faz parecer ainda
mais numerosos, é que são mais audazes, e sentem que essa audácia mesma lhes é necessária para triunfarem; e, todavia,
compreendem de tal modo a preponderância do bem que, não
podendo praticá-lo, dele tomam a máscara.
Os bons, ao contrário, não exibem as suas boas qualidades;
não se colocam em evidência e eis porque parecem tão pouco
numerosos; mas sondai os atos íntimos, realizados sem
ostentação, e, em todas as classes da sociedade, encontrareis
ainda bastante boas e louváveis naturezas para vos
tranquilizar o coração e não desesperar da Humanidade.
E,
depois, é preciso dizer também, entre os maus há muitos que
não o são senão por arrastamento, e que se tornariam bons
se fossem submetidos a uma boa influência. Coloquemos em
fato que, sobre 100 indivíduos, há 25 bons e 75 maus; sobre
estes últimos, há deles 50 que o são por fraqueza, e que
seriam bons se tivessem bons exemplos sob os olhos, e se,
sobretudo, tivessem tido uma boa direção desde a infância; e
que sobre os 25 francamente maus, nem todos são
incorrigíveis.
No estado atual das coisas, os maus estão em maioria e
fazem a lei para os bons; suponhamos que uma circunstância
leve à conversão dos 50 medianos, os bons estarão em
maioria e farão a lei por seu turno; sobre os 25 outros
francamente maus, vários sofrerão a influência, e não ficarão
senão alguns incorrigíveis sem preponderância.
Tomemos um exemplo para comparação: Há povos entre os
quais o assassínio e o roubo são o estado normal; o bem ali é exceção. Entre os povos mais avançados e os melhores
governados da Europa, o crime é exceção; perseguido pelas
leis, e sem influência sobre a sociedade. O que ali ainda
domina são os vícios de caráter: o orgulho, o egoísmo, a
cupidez e seu cortejo.
Por que, pois, esses povos progredindo, os vícios ali não se
tornariam a exceção, como o são hoje os crimes, ao passo
que os povos inferiores alcançariam novo nível?
Negar a possibilidade dessa marcha ascendente seria negar o
progresso.
Seguramente, tal estado de coisas não poderia ser a obra de
um dia, mas se há uma causa que deve apressar-lhe o
advento, sem nenhuma dúvida, é o Espiritismo. Agente por
excelência da solidariedade humana, mostrando as provas da
vida atual como a consequência lógica e racional das ações realizadas nas existências anteriores, fazendo de cada homem
o artífice voluntário de sua própria felicidade, de sua
vulgarização universal resultará, necessariamente, uma
elevação sensível do nível moral atual.
Os princípios gerais de nossa filosofia estão apenas
elaborados e coordenados, e já reuniram, numa imponente
comunhão de pensamentos, milhares de adeptos disseminados
sobre toda a Terra. Os progressos realizados sob a sua
influência, as transformações individuais e locais que
provocaram, em poucos anos, nos permitem
apreciar as imensas modificações fundamentais que são
chamados a determinar no futuro.
Mas se, graças ao desenvolvimento e à aceitação geral dos
ensinos dos Espíritos, o nível moral da Humanidade tende
constantemente a se elevar, enganar-se-ia estranhamente
supondo-se que a moralidade se tornará preponderante com
relação à inteligência.
O Espiritismo, com efeito, não pede
para ser aceito cegamente. Ele apela para a discussão e a luz.
"Em lugar da fé cega, que anula a liberdade de pensar, ele
disse: Não há fé inabalável senão aquela que pode encarar a
razão face a face, em todas as épocas da Humanidade. À fé, é necessária uma base, e essa base é a inteligência perfeita do
que se deve crer; para crer, não basta ver, É preciso
sobretudo compreender." (O Evangelho Segundo o
Espiritismo.)
Pois, com justiça, que podemos considerar o
Espiritismo como um dos mais poderosos precursores da aristocracia do futuro, quer dizer, da aristocracia intelecto moral.
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